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domingo, 29 de junho de 2014

A Psicodelia e os Labirintos da Mente

São os zumbidos confusos da rua, das máquinas de ferro insanas, que carregam pelo asfalto frio os passageiros dos trens invisíveis. Conversas esquizofrênicas denunciam a presença constante de estranhos. Dentes trocam sons por entre barbas, garrafas e mãos. As luzes neon dos bares lançam sombras às calçadas e piscam em síncopes fracas de voltagem pálida e inconsistente. Todos sabemos quem somos no fundo, mas na noite urbana esquecemos. Tudo se torna incerto. Abrem-se buracos negros e o mistério absorve a ciência. Pelas ruas madrugais da cidade voam os fantasmas do desconhecido. É um quase-silêncio, em que a escuridão e as ruas de fundo prometem mundos devassos e libertinos aos curiosos corações ingênuos. É a massa humana se encontrando, respirando o ar corpulento da noite, discutindo os temas, se avaliando com lanternas dantescas que lhes emanam dos olhos lupinos. São os lobos da noite os jovens, com seus casacos de pele estampada. Com as suas intenções predadoras voláteis, se espalham em alcateias. Os grafites se movimentam de noite, como se o diabo lhes soprasse vida, e dançam com as sombras das árvores. À noite a carne é crua, a mente se desprende da gravidade e os psicodélicos surgem soturnos. Os psicodélicos são homens de preto, são mulheres de vestidos brancos. Pairam no meio da rua, no final do beco vazio, convidando-te à magia. Carregam músicas na aura; violinos pesados, tambores tribais e sussurros. Os psicodélicos sabem tudo. Ao redor de cada esquina há um labirinto, há um portal secreto no asfalto, que só os psicos sabem abrir. Eles nunca sorriem e não tem nome. Psicos tem carga elétrica, podem energizar mais de vinte pessoas apenas com a presença ilusiva. Somem sob olhares fixos, cochicham nos ouvidos de outros. Psicos escrevem música com os dedos e fazem amor primal. Psicos nascem do pulsar noturno, perambulam por espaços vazios, às vezes andam pra trás, às vezes flutuam no ar. São os guardadores do mistério noturno. Representações quânticas e sinestésicas da magia que escorre da lua. Do vapor gélido e lisérgico que a maré cheia libera, que nos entra pelos pulmões como xamanismo lunar e preenche nossas pupilas com as 23 cores secretas. Somos quase-zumbis durante o ciclo diurno, operários letárgicos se arrastando pelas filas de banco, nutrindo ansiedade pela próxima dose do vapor cigano, inseminado e jorrado da lua. O elixir místico da boemia, servido em cálices turco-romenos, surgidos infalivelmente dos bolsos fundos de psicos disfarçados. Serventes da insônia. Piratas da vida eterna. Somos todos amantes da lua.

As Ovelhas

Somos ovelhas, carneiros. Temos pele de lã. Vejo um retrato meu de criança: "Esse aqui tinha tanta esperança". Ando pelo bairro sozinho, desafiando a calçada. Desafio o mundo e as voltas que dá, depois me retraio a minha pequenice. Somos ovelhas, carneiros e cabras. Somos notas musicais preenchendo o espaço. As ruas são nossa caixa acústica e entramos e saímos de tom. Formamos harmonias com os amigos e ao longo dos anos vamos compondo melodias juntos. Compasso aqui, compasso ali. Aquela estrofe no colégio, aquele refrão nas mesas dos bares. Somos músicos desajeitados, improvisando em instrumentos ocos. Baixei na internet o canto de uma baleia, pra ouvir nos dias de chuva. Cinza no céu, poças escuras no chão e o eco submarino de uma amiga, flutuando pelas profundezas e me chamando pro fim do mundo. Me chamando pra nadar com ela pelo infinito azul e esquecer. Às vezes fecho os olhos enquanto caminho, pra sentir aquela excitação do perigo.  Nunca bati em nada com os olhos fechados. Bato sempre nas coisas com eles abertos. Só sei me soltar de minhas ânsias quando deito na volúpia da cama. Minha cama é como um lago arenoso; águas turvas onde desapareço à noite. Quando o peso de ser humano desliza pelos meus membros úmidos e minha alma cristalina estende galhos translúcidos ao infinito e ao mistério profundo. O mistério profundo é a música que toca no fundo do silêncio absoluto. É a coruja invisível na mata, no fundo das trevas da noite. A coruja que chama meu nome, em línguas que só os animais conhecem. Se ao menos eu falasse a língua profética das corujas, dos insetos elétricos, das paredes da madrugada, das castanheiras e dos quero-queros, das marés noturnas e da lua cheia. Se ao menos eu vivesse o amor pleno, que sei que habita em mim, ao invés dessa consciência auto-deflagrante, que me promete apenas a escravidão. Porque me vejo em todas as pessoas e coisas do mundo, menos no espelho. No espelho há um fantasma magro que me suga a vitalidade com os olhos, e toda vez que o vejo envelheço um pouco. Sei que ele continua ali quando fecho os olhos, e essa é a macabra história de ser a mim mesmo. Que nunca entrarei nessa cama ou nessa terra encharcada de chuva. Nunca serei o que meus pais querem pra mim, o que meus irmãos vêem em mim ou o que meus conhecidos suspeitam sobre mim. Serei apenas um quase. Nem aqui concretamente, nem no espelho inteiro. Fraturas de tudo o que me disseram. Sou milhares de crianças com olhos gigantes e a boca meio-aberta. Uma pra cada animal que já vi latir, galopar, respirar, ou emitir palavras enigmáticas nos cantos vívidos da selvageria. Vejo a natureza do outro lado do vidro, e eu, deste, preso à minha indignada raça. Aos humanos que compreendo menos do que compreendo as corujas, mas são meu inexplicável destino. Então, finjo que me agrada. Faço-me indignado. Apresso-me a aprender os signos, acertar as palavras. Apesar de minha criança entender cada vez menos e se isolar de mim, monto-me em teorias e as passo aos próximos. Minha tara sádica é passar conhecimentos adiante; desanuviar mentes ingênuas, roubar-lhes um pouco da maravilha de um mundo inocente. A vingança mais discreta de todas e a satisfação mais amarga. Mas, em geral, eu acompanho a corrida. Essa corrida humana, louca e desesperada ao futuro. Não sei se é fuga do passado sangrento ou ânsia pela virgindade do futuro, mas não há pausas ou descansos. Tento entrar na linha. Seguir o ritmo. Preencher as lacunas. Corresponder às expectativas. Entregar a dissertação. Apresentar a peça. Fazer a entrevista. Agradecer os aplausos e partir silenciosamente. Tomar meu banho e dormir. Me lavar desse mundo e deixá-lo. Nunca mais ver no espelho a criatura muda dos olhos pretos. O limite de minha existência.

domingo, 21 de outubro de 2012

tudo é resumo de tudo, que é tudo mesmo. o que significa que ao tentar fazer resumo, se faz tudo, e ao tentar fazer tudo, se faz resumo. Síntese de tudo> Literatura. Literatura? Liter atura.

Trepidam, inervosos oscilàm. Hackers, milhões de ovos, devi dru. Eu sou a oca e a hidra. Você, nervosa, a ionesca. Mudam os povos, os rostos. Ergonomia em direitos. Econoclastas perfeitos. Móvem ermosas muralhas. Móveis novelos e tralhas. Póp dengoso e canalha. Sangra esse torto endivíduo. Eles dilutos nas folhas. Eu diminuto entre rolhas. Cheiro de vinho noir. Ao cheiro divino obedecem, enquanto descem, enquanto descem. Enquanto tecer for o ato, o terceiro mato da noite, avida entre fartos e foices e cambaleões andronescos, Digiatual sin contexto, los otros los toros los pocos los robo-ativistas imersos nas pistas nas rádio novelas nas telas mais belas, nas cordas nas bordas da real idade do mundo undundo undundunduquê, du badibá do badibê do shangri-la sei lá o quê. Do que nos move e não resiste. Ela desiste. A rua pára. O parto é meu e o belzebu e a banda toca, é o meu dilema (tum tum tum). em Ipanema, em Urano. Cantos sacros roupas pratos (tu m tum tum). Lá fora o quente arde, a rua pára ela desmaia o tempo morre (tum tum tum tum tum tum) Na beira amissa armácio o osso, despompéia dislexoso diz lá longe o bom leprôsa aroma areia arame arado e a epopéia e a carnisseca e a memória do ladro (tum tum tum tum tum tum tum tum tum tum tum tum tum tum tum) Abre essa janela e vem ver quem faz o dia. Todos vocês mestigados, chei coalhados, chove ao lado do Nacional. A vara cuso não pertence ao Banco tal é Nacional É ouro puro é ouro preto é partinpim é mouro é feto é o Trem que vai nos levar daqui. Quando termina eu fico olhando pras paredes eu só vejo a morte. Eu só vejo a vida. A onda explode, arma essa ira. A flor se come se me flagela o mundo inteiro em chamas vida se chama vida se chama tudo e QUEM CONSTRÓI PAREDES MORRERÁ CEGO. Tem quem se ame e quem se baste e quem se lasque e quem não pira, constrói janelas, constrói janelas, constrói pra ela, pra ser um frasco de água em Marte. Tudo anda na mesma direção. Giro e ação. e um dia acaba. e ôu. e ah. E eu e a.

sábado, 30 de junho de 2012

Similarmente,

Os beijos dos namorados de domingo, na alienação dos apaixonados, são beijos meus, repassados das bocas que já conheci com ternura. Cada pessoa possui um DNA do beijo, um jeito só seu de beijar, e quando as bocas de um casal se encontram as técnicas se misturam e ambos recebem metade do DNA do outro, que repassam ao próximo amante. De certa forma, todos nós já nos beijamos.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

O Espelho

Nada mudou desde 10 de Setembro. Continuo impregnado com o asco do mundo alheio. Continuo incapaz de definir o limite entre o externo e o Lucas. "Ninguém mais é romântico com essa merda de não se abandonar completamente a nada inseguro." Continuo deslocando os meus ferimentos íntimos para o mundo fictício que finjo que há lá fora. O chorume infeccioso do Rio de Janeiro alastrou-se de meu intestino, é meu bile tornado visível. Os novelos róseos que embranquecem o azul do céu nessa tarde são meus devaneios geminianos, que escapam de meu crânio pela orelha, sobem ao céu como balões e viram nuvens na troposfera. O mundo é minha criação acidental,  uma continuação de minha pele, um cancer. É como um sonho que tive em Abril. Ironicamente, quem eu sou é apenas um conceito vago, perdido em um sebo mal frequentado. Um devaneio espontâneo rabiscado a caneta no canto ocre da página de um livro de poemas esquecidos. O aleatório mundo mágico da inspiração breve que não se concretizou. E a vida é isso. A troca de um olhar devasso entre dois humanos à beira da morte, que abandonariam tudo pela permanência duradoura do incendimento que lhes ocorre no sexo. O ímpeto humano, a coisa irreal. Nada é sólido, tudo está a se transformar. Como um organismo simples nadando em litros de óleo incandescente, uma ameba flutuante com um destino terrível. Tudo que existe vive para morrer e viver de novo, se deteriora e se regenera. E o resultado é um golem disforme, que nasce da imundície e cambaleia debilmente com pernas de lama preta em minha direção, petrificando-se sob o calor do sol. Da massa viscosa da cabeça do monstro surgem narizes e dentes como se fossem os rostos de almas penadas, tentando escapar de seu interior. A transformação é uma processo tormentoso e terrível. Mas sob o fogo duro do céu, a lama encrosta-se e se esfarela, se joga da criatura ao mundo e se dilui no solo novamente. Sob a camada de barro sumida, se revela uma linda estátua de pedra ígnea, esculpida e polida em simulacro do ser humano. O homem vitruviano corporificado, andando. Seus olhos de pedra me encaram impassíveis, imortais por trás de óculos de armação redonda. O último terror da mente é ver seu próprio rosto na face do que te apavora. O transmorfo roubou minha feição e agora me encontro perante a uma cópia rochosa de mim mesmo. Não sei se nessa criatura há coração. Me sinto esmaecendo sob o olhar excruciante da pedra. Eu que sou eu sou tão pouco; um punhado de terra molhada pode se erguer e se dizer Lucácio. O cálcio de meus ossos azuis não é páreo contra o bruto negro da crosta terrestre. Se fraquejar, perco minha existência no espelho. É uma luta da mente e da alma existir e afirmar que existo. O golem de lama sou eu, e o animal rosa me encara assustado, exalando alarme e mortalidade. A única memória que tenho é do centro líquido da Terra, de pulsar no quente âmago de Gaya e de ser cuspido para a superfície. Nos piores dias do inverno da alma, quando a solidão se torna força sísmica e derruba sobre mim os prédios, tenho vontade de re-penetrar no solo. Não sou mais romântico com essa merda de não me abandonar completamente a nada inseguro. E o mundo me espelha na inconsistência. Nada é puro.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Fyodor, when he was still a peckish boy of 8

Through the ochre lens of long lost hope, Fyodor's puny condemned heart beat fickle into the midnight dreary. No amount of electric luminescence could restore imagination into the drab-hap of a child. The blithe, dull, honey-colored beams from the green plastic vines hanging all over town might as well have shined tiny bulbs of lettuce for all he noticed. The sound of sleigh bells could not excite Fyodor this december. The singing of carolers would not enchant Fyodor this december. The crisp, warm, dizzying scent of hot apple pie fresh out of a steamy oven could not, would not and simply had no power whatsoever to imbibe Fyodor this december. He strolled unconsolable amongst the merrymakers, unaware of the hour, uncaring. Santa would not be coming this night. Santa Claus, he now knew, simply was not. "Fiction", he muttered, shoving his hands into the two front pockets of his jeans. As he spoke, the word condensed into a small cloud in front of his mouth, lingering as if to ironically remind him of it's truth. In no mood for a party, Fyodor had stepped outside of his temperature-controlled american home to find himself in the dark, lonely back-ends of suburban Arizona. Over the now-lessened sounds of his eggnog worshipping family, the silence of the suburbs owned the night and wrapped itself around the boy in a great muted hush as he closed the door behind him and stepped out onto the pavement. In the distance, the sound of a truck down the highway reminded him of yesterdays and of how bleak this street was most of the time. Every morning he would walk out of this exact door into the pale morning, as disinterested in the daily occurrences of West Hayward Ave. as they were in him, repeating steps he must have taken a hundred thousand times to a purpose that just now he could not imagine. As he looked out into the stillness of the overly decorated houses that normally were well hidden in darkness at this hour, all beaming electrical as if covered in dying fireflys, he realized there could not be a more boring place on Earth. "It is all sustained by lies" he thought disapprovingly, and then spoke the word out loud as if to prove his point. Lies. There was no Santa Claus and all the adults were drunk, pretending to the young ones that there was, laughing heartily between themselves at the wide-eyed innocence of the uncorrupted. They, whose lies were governed by sex, jobs, newspaper headlines and bus schedules thought it a joke to watch kid's imaginations sparkle and pop under their manipulation. "We are all doomed to have our hearts broken." was the phrase that now settled into the forefront of small Fyodor's restless mind at that moment. Although the street was dead quiet and still as a photograph, the thoughts in his tiny little head grew louder in a frantic search for organization. Now absorbed in his thoughts and vaguely aware of himself, Fyodor dropped plumply to the ground and sat comfortably in the cold cement. A tiny figure in a vast expanse of land. We are all doomed to have our hearts broken, he continued, because everyone sooner or later renounces the idea that maybe there are amazing, magical things out there, somewhere, and accept the vastly more popular idea that what you see is what you get is all there is. And what is is bus schedules, newspaper headlines, jobs, sex, eggnog... these are all things that everyone can agree on and do not break anyone's heart because they never cease to exist in a concrete way. The tree house that he and his dad had built this summer meant nothing, suddenly. One can not live in tree houses because they have no safety, they have no electricity, no basement, no refrigerator... not even an address to receive the bills. The tree house meant nothing and neither did his toys, neither did his books. That was why his dad didn't have any of those things, because they were not things of the adult world that all the adults had agreed upon. They were not essential to anyone's survival. What was essential was the money. Fyodor felt numbness roll over him like a cold shower as he realized for the first time in his life that money, the paper which the adults had all agreed could be worth anything, and which he had sheepishly begun to use as he turned eight and was entrusted to buy his own lunch at school some days, ruled the world. It was the reason his dad wore a suit with a tie and drove a car, it was the reason some people had houses while others lived on the street asking for money, it was the reason artists like Elvis recorded cds, it was even the reason that he bought pizza at school on tuesdays and some friends just brought an apple from home. Money was the one thing all adults had agreed upon to substitute Santa Claus and tree houses and the belief that super-heroes were real and lived somewhere, but not here. Fyodor sat in silence and imagined the lifespan of the human person. First, as a child, believing that Santa Claus was real, then being told that he was't, then slowly not believing in anything magical anymore as he became a teenager, then, after being a teenager, starting to think about getting a job so he could get money, then being an adult that works all the time to win money, then having a child and telling that child that Santa Claus exists because he's too young to know about money yet. "What happens between being an adult and working for money and death?" thought the young, freezing little eight-year-old. But he already knew the answer to that because he, Kelly, mom and dad used to visit Grandpa on the weekends at the old people's home across town before he went to Heaven. "Nothing." he said aloud, as if he was describing the universe to the empty street. Dad will grow old and stop working and go to a home like Grandpa and die. And if I stop believing in Santa Claus, and in magical powers, I will die that way too. An old man who made money until he couldn't any more, then just spent the rest of his life watching TV because he didn't believe in anything until the day he died.

Fyodor stood up.
His eyes were wide open staring out into the abyss of identical houses all the way down his block and to the next block. He had just pictured his whole life in a vivid flash of imagination. He definitely did not want things to be this way. He turned around and peered through the front windows of his house into his own, dimly-lit living room. There, under swarming amounts of christmas lights and plastic decorations, wearing sweaters and jeans and christmas hats and all holding glasses half-filled with one type of liquid or another (that he couldn't drink, probably), stood all the adults of his family. They laughed and pointed at each other joyfully, they spoke of things that he probably wouldn't understand and patted each other on the back. They drank from their glasses while listening to each other speak. All of a sudden, Fyodor was overtaken by a great sense of calm and self-awareness as he stood silently holding his pale left arm with his right hand. They were the clueless ones now. As they stood there, admiring themselves for their own wittiness and intelligence, quipping and babbling and merrymaking, they were under the illusion that he, Fyodor Moore, was somewhere about, involved in some kind of childish vagary with his sister or, alas, had gone to bed, the victim of enthusiasm's unwielding grind. They thought themselves keepers of secrets too sobering for their burgeoning minds, all the whilst unaware that they were being watched from afar by their pre-pubescent son, who in turn, was beginning to consider himself as a protector of the fantasies that made the world beautiful, that made life worth living. Fyodor felt pity for his parents who, no doubt, lastimated over the terrible bleakness of their mortal fate secretly. He vowed to himself that their lives were the first he would save from the cold reality of monetary existence. If he could get them to believe in the magical once more, maybe their impending doom could be averted. Maybe their lives could be more than just a long hard walk to the inevitable, scientific, solitary death. Fyodor re-entered the house. Back in the warmth of the motherland, Nat King Cole's velvety croon rolled smoothly from the gramophone into the drowsy atmosphere. The eight-year-old boy passed stealthily through the living room and up the staircase. In a few creeping moments he lay sinking into his bed, immersed in his thoughts. Fyodor was a peckish boy of 8, creating a plan to change the world.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

não ser humano



Global Groove
(Nam June Paik, 1973)

sábado, 10 de setembro de 2011

Revolta com as defesas emocionais dos outros

Ninguém mais é romantico com essa merda de não se abandonar completamente a nada inseguro.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Pa- Pa- Palavr- mots.

Situação logro, do lobo da estepe, o morno que me embebe, sou o fauno da Antuérpia. Odalisca, opereta, minueto e Moriarty; as palavras nos cercam mas esquecemos da arte. Roraima em chamas e o teto da tenda, sob a lenda da trema e o uivo do chá. Novelo de lã contido em um grão, um infante babão que pusemos na neve-
Pros ursos e os faunos, e o sangue jorrar e o mundo girar mesmo assim. Opaca e indelével em Esperanto ou Romeno, sua língua me deve mil perdões. Oração pagã ressoou no peito e lembrou sujeito da fome umbilical, do seio ancestral, da caça genética e ele olhou para o copo de leite e o copo de leite se estilhaçou pelo chão. Somos feitos de neve, de água leve e flutuante que sobe ao céu e desce do céu e engasgamos na carcaça que no meio da auto-estrada, no meio das discussões políticas, no meio das ambições artísticas, no meio da valsa, no meio do filme, no meio do funeral se levanta. Zumbi do consumismo em massa, da cultura barata; falo da corrupção que nunca se exaure. Eles disseram poucas nuvens no noticiário, sem rituais ao deus SOL, sem oferecer os virgens. Eles dizem mãos aos pescoços nus, como fossem tabus da religião lacrada. Como podem dizer cuide de sua cidade quando a ciutadela se esvaneceu, debruçou sobre si mesma e se engoliu. Quando a comunhão permaneceu secreta, a família permaneceu bélica e ninguém vê ninguém morrer. Como queremos ser se negamos ser para sermos em outrora. Competimos com nossos irmãos pela aparência física dos falsos deuses, vestindo máscaras de cordeiro e pintando tudo quanto é orifício. Se ofuscamos o campo da visão com logotipos de supervisão. Se negamos o fecal sem mesmo admitir que é simultâneo ao cutâneo. Somos pernósticos renunciadores de nectar. Por isso mesmo a tarde vã nos envolve trôpegos, nos mantêm como entorpecentes. O olho da serpente é meu e o seu eu chamo de pistola, mas o meu, rodado em mil bitolas, já se derreteu como o argumento dos incipientes, como o discurso dos sans-culottes, como o lote de goiabas da feira de anteontem, carcomidas pelos embriões de larva e de minhocões.
As roupas flamejantes no varal, o dado de 7 faces, a criança no milharal e a condição humana que arde. Tentar impressionar no bar, o sigilo do sexo exposto. Tentar impressionar a mim, que há anos não me reconheço. Tentar saber quem é quem, em carne osso ou gesso. Imitação de um buraco negro, submetido à tara humana, no laboratório do insaciável e no erro de se achar profana. Os mundos anteriores a esse, se vissem, nos velariam. O polvo no espelho, invenção de Luis, o bálsamo negro da pestilenta raiz. Tudo no fim é oração. Que me salvem dessa maldição, condição humana, da máquina do pensamento, da paranóia e dos medicamentos, da auto-crítica e da opressão, da repressão e da ilusão. Que me queimem vivo antes de pedir meu número. Que me joguem aos lobos antes de me empurrar contratos. Que algum Deus ou alma caridosa me retire a máscara com uma bala de winchester, não me inebriem com as mentiras da festa, não me rotulizem com as roupas que vestem. Me dê a mão sobre as pontes que restam para retornarmos à Pangeia melados com a seiva de Gaya e drogados com nossa própria química, nascidos pelas nossas próprias mãos, rojas de barro, úmidas e amnióticas.
Imortalize-se agora ou espere que o satélite elétrico se transforme nos portões de Shangri-la.
Pa- pa- pa- petit morts.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Auto-humor:

O número para que você ligou não existe.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Sobre a Memória (um texto que não foi escrito)

Carta a mim mesmo, pela opressão que pratico em outros, e àqueles que a mim procuram oprimir.

"Sobre a Memória"

É importante não esquecer que não existe a autoridade. Que não existem os direitos humanos. Que não existe a propriedade. Não esquecer que somos animais. Não somos máquinas, não somos deuses, não temos poder, não cuspimos fogo. Somos animais como os elefantes, como os bonobos, como as centopéias, como as solitárias, como os ratos de esgoto e as baratas, como os lobos da estepe e como as belugas. Não esquecer que não sabemos fazer a fotossíntese e nem a respiração celular, nem a mitose, nem a meiose. Também não sabemos bombear sangue pelas nossas veias ou oxigênio pelos bronquíolos e não sabemos utilizar o hipotálamo ao invés da medula. Nunca vimos um cerebelo. Não sabemos dilatar a nossa pupila. É importante não esquecer que não existe a matemática, o código binário e não existem sistemas. Não esquecer que não existe Deus ou anjos ou unicórnios e também nunca existiu o harry potter. Não esquecer que não existe a filosofia e o pensamento e portanto seria relevante que fechássemos de imediato todas as faculdades de ensino. Não existe o capital estipulado, os investimentos e a economia certamente não existe. Não existiu o cubismo ou o impressionismo e muito menos o barroco. Não esquecer que não existe a moda, nem o estilo, nem a beleza e também não existe a inteligência. Não esquecer que não existem os loucos. É cada vez mais importante não esquecer que a internet não existe, e você não está "lá" agora. Saturno não existe e você não está "lá" agora. Não está lendo palavras, palavras não existem. No máximo, você está vendo luzes piscantes. Está vendo freqüências diferentes de ondas luminosas. Ondas não existem.
É importante agora relembrar que (além da memória) não existe a negação ou a afirmação e não existe a inexistência. Nascemos pelados, chorando, sangrentos e de nenhuma forma preparados para receber tudo isso que não existe. Coexistir com Deus e sete bilhões de pessoas e respirar em um só gole infinitas partículas flutuantes. Não estamos preparados para que nos digam que há seres vivos vivendo no nosso estômago ou que contemos no nosso sangue o sangue de todas as gerações que viveram na Terra por 200.000 anos. Não estamos preparados para saber qual é o nosso QI, nosso CPF ou o nosso presidente. Não estamos preparados para que a conseqüência de não saber essas coisas seja a prisão. A prisão. A Bastilha. Se você estiver na rua e não souber o nome que seus pais lhe deram, você será retirado e colocado na prisão. É importante não esquecer que não existem os direitos humanos. É importante não esquecer que não existe Deus. Não esquecer que somos animais. Que não existe o pensamento.

Eu não escrevi isso.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Um cara tá escrevendo no chão com giz. No final, ele olha pra câmera e come o giz.

Roberto Retalhos
desfia teu tecido
em tributo ao instinto
de músculo e sangue
Rebobina, gigante
morde a tua língua
retrai-te ao sonho
e dilui o chocolate
Dilui o chocolate! Filho do puta!
Samanta Malandra
come o que é do seu direito
Tome todo meu dinheiro
e compre uma passagem pra paris
Pegue o expresso pra Madrid
e cante coisa que valha
Santa Malandra, filha da tropicália
Dilui o chocolate, porra!

Lou e Ostra

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Um carinho.

O que dizer, desentalar? Não sei. Confundo o tédio com o desespero. O Desejo com a habilidade. Recuso-me a escrever enquanto não me apaixonar. Rejeito esse Realismo sorrateiro, de gosto amargo, ácrido e bílico. Todavia, o romance tem que vir de mim. Meu corpo o conhece, minhas palavras esquecem. Confundo a água com o teu cheiro. Rabisco feito enchente, descuidado. Não sou gente, nem estrago, nem tenho inteiro teor humano. Quem sabe não escrevo os versos da lápide, para dizer adeus como um novo olá. Receber o que então virá. Na vida ele trazia consigo toda a confusão de quem tenta entender. Não. Risca isso. Faça uma gravura na pedra. Lou, Lou, Lou, enfim a sós com Lou. Que dizer, amigo? Não abre o bico. "Não sei dizer que já vi você." Entre os pontos em uma reta, entre as espumas no mar, entre bolhas no whiskey, crianças no parque, entre as vozes no bar. Não sei dizer que o tempo realmente não existe, que as paredes não existem ou que nenhum de seus pensamentos existe. A religiosidade é aceitar que só existe um. As demais palavras são supérfluas. Não é necessário mais que um. A Terra é uma. O sistema solar é um. A dimensão, esta, é uma. Nada é mais que um. Por isso não vejo mais motivo para continuar com essa fratura constante. Se as palavras não vem do peito, são canyons entre rochedos. E seco, estalo e me estilhaço em cacos. É um comun e errôneo conceito que diz que o vidro é não mais que um líquido de movimento lento. Quero a mente líquida e o peito intacto. Para perfurar se for pendurar e nunca rachar ou estatelar. Mas enfim, é tudo uma questão de ponto de vista. D'onde você lê. D'onde escrevo. Onde seremos lembrados quando nossos corpos jovens putrificarem? É uma perda esse desperdício todo de paixão. Universos separados por versos que não combinam ainda. Sou o homem polvo, do coração viscoso. Geminiano até a última gota, e depois dela a secura para do-contrar e encontrar a paz. Não há paz a não ser nos braços, que, distantes da mente, se enchem de calor, como bolsas d'água, corações tentáculos, bebida morna esquentando a garganta. Como a lua cobre, um livro ermoso, o nome dela, as caravelas, os lírios e os pobres poetas, as gentes simples, o chão socado, a luz dourada e a respiração. Quanto amor se pode ter na profunda respiração. Um carinho ao corpo, pelos pulmões, um pouco de tom, moraes e toquinho. Tomo licença poética para transcrever esse desabafo, e me sentir mavioso no final. Se ao menos você pudesse ouvir, minha voz de polaina em dia de frio, te dizendo baixinho, como quem diz a si mesmo: só importa esse momento aqui. Tô tentando te traduzir um pouco desse amor de irmão. Conselho e sermão. Você tá tão bonito hoje. Talvez a vida seja uma cascata, fluindo do topo do mundo ao baixo. Que podemos fazer na queda se não respirar e olhar e olhar? A queda da cascata, o pulo do cânyon, da janela do avião, o pulo parado no mesmo lugar e enfim a zero gravidade. Quem fecha os olhos na queda sente a zero gravidade. Quem bebe cerveja também. Mas meu ponto é mesmo esse: como é possível não enlouquecer em um mundo que ao mesmo tempo é físico e imaginário? É preciso um conforto, um carinho. Você está mesmo, tão bonita agora.

This ain't going well...

Everyone just gets up and leaves
It's quite an emotional scene
But they sent back the script in the mail
The end isn't finished you see

Love is a faceless mistake
Just about anyone can make
She sent back those roses I wrote
Reminding me we never spoke

Well Well Well
What an honest day
I've got a vague idea
that you're made of fate
You wear the same mistake i sell
This ain't going well...

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Some other dude.

Well I've been fine recently
Still confined as you can see
Still dependant on
The city lights for fun

But it's the fights i miss the most
You're so clever when you're throwing stones
And the streets they don't
Get wet until you're done

Well I know your heart is small
But it gets bigger every day
And if you only came to stay
We could build a room

And if you waited til the end
And saw me as more of a friend
I'm sure you'd pick me instead of
Some other dude

Cuz I've been dying recently
From the tops of river trees
I've been floating on, not living up
Still hanging on the corner of

The fights i miss the most
You're a devil when you're wearing rose
And the streets will not
get wet until i'm old

Yes i know your heart is small
but you get bigger everyday
and if you only spent the day
we could get a room

If you waited til the end
And saw that i was there again
I'm sure you'd call me instead of
some other dude.

domingo, 19 de setembro de 2010

Teus cachos merecem crisântemos.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Poema de 1 minuto.

Não sinto muro
Entre mim e o mundo
Não sinto nulo
Não vejo erro
Não quero drama
Não sinto enfermo
Não no fundo
Sim sou no scuro
solo no mundo
Sem raiva ruiva ou muro
Sim ao novo
Mesmo duro
ao que me luta
Sim ao furo
Sim ao fruto
Mesmo doente
Sim ao luto
Sim aos meus dentes
Sim erotismo,
romance
ao árabe
Áfrico,
Ao selvo
Ao calmo
Sim à alma
Ao que tenho medo
Ao pior desejo
Ao filme ruim
À má vontade
Sim dentro de mim
Inteiro,
ou em colagens
Sim mesmo quando não
Não fugir do sim
Sim pela certeza do sangue
Acordar novos dias
Dias virão
Eu serei
Tolo ou rei
Sujo ou não
Irmã ou irmão
Sim a isso
Não ou sim.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Levity pt. 1

Serenity's levity
In livid love
Does coves of plume
Azure above
And mute the latter
Bathes a son
That blooms in
Tendrils undone

But summer's union
Lacked the warmth
To put at ease
A lover's storm
And scorned the woman
Killed the man
And undertook
His corded hand

To ever lie
In winter's gaunt
Ever deny
The cinders' want

For Emma, Forever Ago

Teu cheiro é doce. Meu ponto na última noite é o despertar do olfato, primo distante da percepção. Aprendo teu cheiro como meu rosto na madeira dura da árvore, doce. E, às noites antes, espantos e ensaios de discursos intoxicados. Curtas íntimos esquizofrênicos de amor exalado. Amor alado inalado fresco como amanhecer ao beira-mar. Laranjas invadindo o anil como o parto de um semi-deus no horizonte. Nascido do fecundo oceano, o amor e o mistério puro. Não consigo me expressar bem APAGA APAGA APAGA APAGA.

Assopra. Vush. Os restos mortais de uma borracha despedaçada. Assim como nós todos, despedaçados.

Ela fecha e abre a porta. Assim como fecham os maquinários de trem, a portilha da fornalha, e abrem novamente para jogar a lenha. Quando ela abre a porta vejo a queimaria acalente, sinto torrar o rosto, me esquenta os dedos gelados na bota. A lenha estoura no fogo. Ela fecha e abre a porta, não entro. Chove na praia e o mar é uma chapa de grafite em ebulição. Pego chuva e meu tênis enche d'água, estou tentando esquecer alguém de quem não me lembro. Só há um número de telefone na minha agenda. Só há um rumo intrínseco às minhas pernas. Meu coração é difícil segurar molhado, pula e escapula e escorrega por entre meus dedos, bate na areia e rola ao mar e o mar o engole em ondas esfomeadas que o puxam às profundezas do mistério puro e Poseidon e a Pequena Sereia. Quero contá-la que meu cardíaco foi furtado ou por um Deus grego, ou por uma personagem humanóide da Disney. Ela ri mas lamenta minha tragédia. Pausa.
De todas as palavras formadas, nenhuma dessas tateei com as mãos. São como palavras impressas no jornal de um dia em que não li o jornal. Todas minhas palavras tem amor, mas nenhuma delas é amorosa. Queria ter palavras amoras, manga e mel. Queria lhe dar minhas palavras como um presente, como um dia em Paquetá ou um beijo de hortelã. Palavras molhadas de tinta, perambulando pelo teto do meu quarto a noite, brilhando fracamente em verde pálido como estrelas. Desvencilhada, essa é a palavra certa. Ela desvencilhada. Como meu coração - peixe abissal. O que há para amar em um pinóquio a procura de um peixe abissal? Ela não merece o vazio azulado. Merece o quente do amor do lobo, focinho gelado e pelugem quente e o coração lupino entre as costelas, instintual como todo ser-vivo, molhado de vida. Eu lhe daria Saturno, mas é um planeta congelado do outro lado da galáxia. Flores de papel mergulhadas em nanquim e envolvidas com letrinhas que compões os infindos poemas sobre seu nome, florescidas vermelhas, anil e laranja em Abril. O suco de laranjas frescas, acordes de violão, madrugadas viradas, cobertores, todas minhas películas. Quero conhecer os harmônicos de sua voz.

APAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGAAPAGA.


Hell, even nature awakens.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

In the Wee Small Hours

In the wee small hours of the morning,
While the whole wide world is fast asleep,
You lie awake and think about the girl
And never, ever think of counting sheep.

When your lonely heart has learned its lesson,
You'd be hers if only she would call,
In the wee small hours of the morning,
That's the time you miss her most of all.

sábado, 14 de agosto de 2010

Bill e Paulo.

-- Eu não quero... Eu temo fazer essa pergunta, essa pergunta que parece ser sua ruína, sua sina, sua cruz pra carregar nas costas, mas que, como assombração, volta aos meus lábios cada vez que nos encontramos. Tenho de lhe perguntar como o médico tem que lhe enfiar a agulha e o soro na veia.
-- Sim, Bill, Sim. Sei a pergunta, eu sei. Assombração, ruína, morfina na veia, já veio escrito no seu hálito de pastilha e cigarro importado.
-- Paulo, é só responder. Você tem uma resposta?
-- Você podia experimentar mentolados.
-- Me dão fome. Paulo, o livro tem um final ou não?
-- O final é uma instituição do passado. Os romances modernos são desamarrados, recortados, eles são brutalmente honestos e não pretendem a finalidade. O personagem moderno é incerto, desequilibrado, baseado na quebra de princípios ultrapassados como a moral, como a estética perfeita, como início meio e fim. Quando, onde e quem, são perguntas dos roteiristas decrépitos da Era de Ouro enrugada de Hollywood. Nós não fomos apresentados quando chegamos. É ação ininterrupta, Cut to the Chase, geralmente dada por personagens mudos que buscam desesperadamente (assim como o leitor) sentir a mistura paradoxal da originalidade com a familiaridade.
-- Você tem um final?
-- Melhor do que um final, eu tenho ansiedade, insônia, insegurança, um destaque sólido da realidade. Todas fianças críveis de que meu garrancho produzirá obra neurótica o suficiente pra comunicar com as massas nervosas da fragmentada realidade atual. Meu Gran Finale é o vácuo existencial que todos querem reconhecer em si, representado nesse caso pela morte súbita do romance em páginas indubitavelmente brancas. A lacuna cultural. O grande foda-se da arte de volta pra sociedade apática. E não me surpreenderia se o que vier de mim como vingança justificada do meio for interpretado como reflexo penetrante da inaderência dessa geração. Esses apertadores de teclas.
-- Então você não tem um final ainda.
-- Não.
-- Você tem duas semanas.
-- Eu já imaginava pela sua ingrata escolha de meias.
-- Duas semanas e depois eles vão querer uma leitura inicial.
-- Leitada oficial inicial do meu final.
-- Sem prostitutas, Paulo.
-- Meu caro! Cem prostitutas em duas semanas seria um feito muito maior do que o romance.
-- Sem mulheres em geral.
-- Você obviamente não entende nada de romances.
-- Paulo.
-- Bill, não se preocupe com o livro, mas jogue fora as meias.

sábado, 7 de agosto de 2010

A dança dos felinos veludos e o lumiar demoníaco dos números vermelhos no meu rádio-relógio.

O couro encapando o livro era puro vermelho-sangue. Tão cortante e derramada era a cor que despertava ao olhar distraído mórbida curiosidade pelo processo de tintura. O leitor, em pleno leito, era feito vilão diabólico, manchando os dedos naquela carnificina toda. Sendo eu mesmo a vítima dessa posição, curvava como vilão o arco dos ombros magros, que formam junto à base da coluna um V estiloso nas costas. Atracado na poltrona da madrugada na felinidade gorda noturna, rangia até gastar os dentes, pra certo de não ficar surdo e louco com a agulha mortal do silêncio. Minha família dorme feito assassinato e na ausência de demais insones as paredes não me poupam olhares acusativos. Cochicham na cozinha. O livro que se derretia pingou ao chão e com o molho do couro nas garras parecia injusto arrastar as paredes por rigorosa investigação. "Matei eles todos." confessei sem rodeios, "Posso fazer um telefonema?". Suado no desespero, engancho o indicador ensagüentado na roda do aparelho antigo, que giro loucamente até o freio metálico parecendo até vitrola quebrada, que repete, que repete, que repete. Estou ligando para a única alma que me atenderia a essa hora, ligando do interior de um pesadelo. Um ex-amante tornado amigo que contratei como secretária quando sua família tragicamente foi assassinada enquanto dormia. Em apavorante decepção o sinal não é atendido - as paredes parecem descer em minha direção. Elas sobem e descem como a faca de Norman Bates, como minha respiração tubulenta; lentamente me alcançam. Finalmente desisto derrotado de ouvir o sino eletrônico que chama minha imprestável secretária-alma-gêmea?. Engancho o receptor. O telefone imediatamente se põe a berraria. Atendo pra não incomodar os dormentes mas é minha rouca voz que sussurra do outro lado. Havia ligado pra mim mesmo?
- Quem fala?
- Eu mesmo.
- Que quer?
- Matei o tempo.
- Porra.
- As paredes estão descendo, vêm me coletar.
- Fique sob a batente.
- É verdade.
- Algo mais?
- Acho que estou surdo.
- É possível. Aperte, com os dedos, cada tímpano. Sente dor?
- Não sinto, mas minhas mãos estão ensangüentadas!
- Pode ser uma hemorragia cerebral.
- Acho que nunca te amei.
- Todos hemorragiados do cérebro dizem isso.
- Quanto tempo tenho pra viver?
- Não é muito.
- Nos veremos novamente?
- Não como nos vimos antes.

domingo, 18 de julho de 2010

Humano.

Surrupiado momento inquieto, visto do horizonte. Minha voz sem causa. Sem grave ou agudo. Uma voz oca, amassada na brisa perdida. Ordenada paisagem equilibrista do quadro geográfico: rocha coberta de limo, doce tapete azul e cabelos esvoaçando na marisia. Ondas de ouro revelando o segredo sinuoso de um pescoço. À noite, nos escombros, pedregulhos rubros e vítreos refletem meus pensamentos vulcânicos. Inanição das folhas secas sem sequer tronco seco por perto. Inanição minha, alimentado do vento e do silêncio desconfiado. Pretas letras de publicações censuradas em jornais do café da manhã, contrastadas com as pedras portuguesas no beira mar. Manu esteve aqui, diz a calma. Meu nome é um gesso que engoli ao nascer e emplastrou meu útero. Caido errado, pingando a seiva de mãe, no arenoso e movediço. Pernicioso deserto humano. Pernilongo tentaculado.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Taquicardia

De miúdo e esparso o sonzinho cresce. Um tremer d'um zumbido de abelha, um fio gudo aguçando e abrindo. Um som por trás do barulho, quase imaginário, lá no fundo do mundo escuro lá fora. Mas está crescendo, está mudando, se aproximando, você sente pela vibração no ar e da lâmpada acesa. De repente o som adentra seu quarto, enorme, estrondoso, preenchendo as paredes, e você reconhece a criatura-melodia. Ensurdecedora, retumbante, penetrando pelos seus ouvidos e invadindo seus pulmões, é a nona sinfonia de Beethoven que cresce e se torna imensa titânica. Cantam vibrantes em operettos e falsettos, sopranos e contraltos, polífonos barítonos clarinetes e violinos aleggros sticattos crescendo flautinas sinetas agudos tinindo a capella em glória soada aos deuses. Sua pele formiga vibrando, pelos seus braços e adentro sua boca. A lâmpada acesa no teto se expande, ofuscante, queimando um incêndio, sua retina em um fogo, um calor que te possui e seu corpo sua encharcado pelos braços e as costas molhadas às pernas que violentas tremem. O intenso brilho penetrante consome sua visão, te cega. A sinfonia ressoa tempestuosa, atravessando a luz branca, o calor extremo que te come por dentro, e acima da orquestra sua respiração doente, desesperada, o bater surdo do seu coração como uma pancada ao tímpano. Sua boca seca e cheia de dentes e línguas traga o mar vermelho do oxigênio quente, esbraseante, do quarto. Não está mais ali. Está na intensidade, no fogo, no inferno, seu corpo está imerso na presença clara de Deus. Não tem controle, se entrega. Cego, tremendo, não sabe nem mais do seu corpo, que era. A pressão do coração batendo é forte, te nocauteia. 5 litros de sangue entram e saem do seu coração. Vuvum, vuvum, vuvum, vuvum. Você sente o pulsar do órgão com a mão no peito que o segura. Ainda cego, com os olhos abertos em uma densa névoa luminosa, sente os dedos e os joelhos. Param de formigar. A quentura esfria. A língua fria lambe e molha os lábios novamente. A sua respiração se acalma. A luz se retrai lentamente e você percebe o quarto que sempre esteve ali. O quarto vazio com a cama desfeita, o armário de madeira escura e a porta que dá pro mundo.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

PODER vs Amor.




Por Ostra, Tortuguita e Eu.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Bobagem.

Janeira é multidão e ossos
e Melindragem
Sou toscano caido na fossa
fotomontagem
Impercepção de tudo
ou quase tudo
Vira-me vasta miragem
Truco no rolo do filme
viragem
Chama na asa na queda
lançando peças
bobagem
destroços e corpos no mar
Sombrio e glacial.

Devaneio.

Enfim ponho-me à uma cautelosa escrita, como o cego que tatea a calçada com sua vara colapsável. Curvo-me sobre o papel assombrado pelo velho ditado de que não se pode ser escritor quem nada nunca escreve. Não que me falte o desejo confuso de expressão, mas não me sinto hábil a transformar em literatura um catálogo de pensamentos implosivos e simultâneos lidos a mim pela minha própria voz interna, que, a propósito, é menos fanha e insegura do que a que profiro pelos dentes. Também não sinto que posso extenuar a eventual transcrição de roteiros cinemátofos, recortes de cena e diálogos soltos que possantemente dominaram essa minha sala escura de escritas. Eventual digo por admitir que reincidirá e não deixarão de surgir os tais, dada minha necessidade de retê-los e revê-los posteriormente para que componham os grandiosos filmes de surrealismo minimalista que possa vir a produzir, humildemente falando.
Em uma ou outra das crises existenciais que resolveram me banhar recentemente (no sentido literal, pois se escova muita sujeira da mente nessas crises), percebi que, em parte, é possível que minha decisão unânime de me tornar cineasta tenha derivado de meu precisar de uma namorada. Certo dia, em um estupor de juventude que me durou anos, decidi tomar para mim que os relacionamentos são ou seriam como obras de arte e que, através da troca singular de hormônios e oxigênio, se criava ali, entre dois interlocutores, humanos ou pássaros, na rua, no bar ou no quarto de hotel, uma pintura, uma sonata, um curta ou longa ou demasiada arte. Assim fui percebendo todos meus encontros, com os cobradores de ônibus, amigos dos amigos, mãe, pai, Deus e os Orixás: cada um com suas nuâncias, cada um com suas pinceladas em tons de azul marinho ou marrom, cada um perfeito em si. Minha percepção do contato humano, porém, foi se diluindo, como as tintas se misturam no stêncil, e todas as trocas de olhares, as tosses e os sorrisos, que haviam se tornado unidades poéticas assim como são as ondas na praia ou os flocos de neve, se demonstravam também incuravelmente furtos.
Me desesperei ao meio de tantas obras de arte desperdiçadas, largadas na beira da estrada, e me lancei ao esmero de aperfeiçoar a minha composição metafísica de sinfonias do contato humano. Fi-lo com o ímpeto de transformar, ingenuamente, meus amigos, conhecidos e amantes em vitalícias frutas que poderia degustar eternamente, congelados na forma de quadros, poemas ou rolos de nitrato. Percebi-me então ator e diretor da minha reimaginação da grande comédia, da grande tragédia e do grande romance (que nunca veio). Feito uma escultura tridimensional que se revela por entre os desenho coloridos de uma ilusão óptica, percebi a câmera filmadora que eu pusera por trás de meus olhos, e o mis-en-scène que sempre havia composto.
Talvez a melhor conclusão que me veio com os tais devaneios foi de que o congelamento criogênico ainda não é cientificamente possível (fora da ficção-científica) e tais lendas, como a do corpo de Walt Disney glacificado no subterrâneo da atração dos Piratas do Caribe, servem para o incendiamento da imaginação e não da realidade. Roubar o momento de sua fugacidade para guardá-lo para sempre é como roubar a vida de uma pessoa e se ater ao corpo. Percebo, porém, que a arte moderna não se contenta com o etéreo universo do imaginário e muitas vezes se projeta nas ruas e nos escritórios, tomando para si a romântica tarefa de criar obras cujo canvas é o próprio mundo. E concordo. Vejo muitas peças contidas em salas de teatro e saio nervoso, como se ali dentro ouvira um segredo que não podia repetir no mundo real por medo de ser posto no hospício. É muito charmoso, é claro, mas talvez seja necessário retirar as paredes que erguem a separação. A cortina vermelha como um aviso piscante de que é apenas um espetáculo, para não confundirem com a realidade. A sociedade teme o espetáculo. O fantástico não se restringe aos limites da gravata e da camisa branca. A fantasia dá coragem ao homem domesticado como um carneiro gordo ao leão de circo. Não sei mais o que estou falando. Saia daqui e vá conversar com um estranho na rua.

Soul Coughing

Na rua, eles com armas apontadas pra ele.
Escuro, e a lâmpada no alto do poste criando uma poça amarela de luz.
Ele de quatro, na poça amarela. Ele tossindo, tossindo sem parar.
Sua vida pertence a nós. E as armas engatilham. Caclésh.
A tosse fica mais violenta. Ele, seus braços magros estendendo os ombros do cimento. A cabeça e o cabelo oleoso, caindo na cara, babado, tossindo. Arruegh. Rrugh.

E ao cimento cai em cordas a baba. Ele em convulsões. A perna estirada na calçada cinza, as jeans rasgadas. E, em uma contração violenta do estômago, algo lhe começa a sair pela boca. Uma bolha roxa e pegajosa. A catárse, o âmago, a verdade horrenda. Ele engasga, a cabeça balança, todo corpo trêmulo, fraco. Cai no chão a bolha, com um som estourado de soco. Ali, no asfalto, ali na rua, paria pela boca seu coração. E colapsou nervoso, vazio. Sua vida lhes pertencia.

Um papel numa garrafa verde.

Seria assim.

No quadro só seus rostos, de frente um ao outro, os cabelos pretos, ambos curtos, e os pescoços. No fundo, a esquerda, uma grande janela.
Ambos respiram ofegantes, intensamente.
- Se eu fosse um segredo, você contaria a alguém?
ele pergunta.

e então cortaria para uma curta cena dela na praia de noite. Ela está toda iluminada por uma luz branca olhando ofegante as ondas baterem.
Ela, determinadamente tira do bolso um papel, enrola, enfia dentro de uma garrafa verde vazia e faz um grande esforço para enfiar a rolha.
Ela joga a garrafa ao mar. A garrafa cai na água e é trazida de volta por uma onda pequena, e então é puxada ao oceano escuro de novo no retrair.

Volta ao quadro deles dois.
- Eu jogaria você no mar.
Ela diz.
Ele, depois de um segundo, levanta para sair do quarto.

- Leva consigo suas coisas.
E ele pega o casaco no chão, e pega a caixa, olha pra ela, e vai.

A Neve Poente no Campo.

Aos filósofos, os novos amigos, bonecos de carne
Aos impertinentes, acordados e interessados,
postos atentos, os olhos arregalados:
Nasci do frio e Morfeu Imperador me calou com os dedos. Suturou meu buraco de boca, me restaram olhos e um nariz cenoura. Como as corujas, a quem deu olhos enormes, luas negras eclipsando anéis brancos. E a visão que penetra intensa, como lanças. Às curiosas corujas Morfeu cedeu a visão lunática, pálida em mistério. Perante a floresta branca me calo e tremo. Selva de gelo, das árvores mortas, selva da sobrevivência. Minhas curvas me denunciam. Bola de neve no reino do gelo, das estalactites, é presa do tempo. Mas as horas compartilham comigo a lentidão. Paciência anciã, vinda do espaço. O inverno e o gelo são recordações do vácuo espacial. Frios, lentos e assassinos. Porém, o inverno é feito d’água. D’água pulsante, viva, cristalina. Água mãe de todos seres, grávida do solo. Um dia a água preencherá todo o universo. E permanecerei sentado aqui, boneco de neve, espantalho das rapousas e dos lobos brancos. De meu fadado recanto gélido, sou vigia do tempo branco. Cristalizada em teias de rios congelados e neve, a delicada natureza hiberna e me encarrego de guardar seu sono profundo. Se não eu quem confortará os galhos secos? Quem escreverá as serenatas da neve poente no campo?

quarta-feira, 24 de março de 2010

No telhado do prédio de letras, jogando estalinhos nos poetas.

Pólvora nos poetas
Ablusados, chamuscados
Dancem sob minha ira
estourai-vos, entalados

Urrem pulmões na dor
Cântico escravo de cor
Filtro-los no mosaico
Laicos de meia branca

Brandem-me seus floemas
Queimem qui os dilemas
Jovens pobres poetas
dedos do idioma

Bombas aos sós poetas
Estalo a realidade
Choram pelo eterno ontem
Sem dor, Sem dor
Explodem

segunda-feira, 1 de março de 2010

Tinta para escrever em metal, vidro, papel & plástico

Para escrever em português é preciso freiar o cérebro e pedi-lo para parar de cantar letras de músicas americanas. Depois, é uma simples questão de ouvir a chuva que cai determinada e sentir pela primeira vez no ano o frio, vestir as meias grossas de lã, abandonadas aos escombros escuros do armário e curvar-se pensivamente sobre a velha amiga escrivaninha. Me cerco com os volumes de minhas íntimas inspirações literárias, que, confesso, me inspiram mais pela estética das pilhas envelhecidas e o imaginário representado do que pelas próprias palavras. Como eles, sou uma expressão estética e pessoal daquilo que sou e também são minhas propriedades. Me tornei um imaginário, um personagem em um livro, condicionado às palavras de um autor humano e emprisionado pelo encapamento.
Nemo tinha sua tripulação, seu submarino, Viktor tinha seu monstro, Edgar tinha sua insanidade mórbida, Holden seu tédio. O que me pertence? O que me define? Qual é meu livro e onde posso encontrá-lo para saber o que acontece agora?

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Para você

Meu velho amigo, quanto tempo.
Meu bom e velho amigo. Grande pessoa, gigante.
Pensei em ti por aí, pensei na velha guarda. Passei pelos mesmos lugares que vimos juntos e tive nas modernidades um susto. O tempo que passou não foi pouco, desde os dias em que andávamos juntos. Quis vir visitá-lo, fazer uma festa em você, dar aquele abraço. Como está o bom e velho coração? Teu pulsante, enorme e roxo, que sempre me pega surpreso quando faz tremer as paredes e os galhos das árvores.
Como está seu amor? venho espalhando o pouco que você me deu por aí, ensinando os outros a acreditarem no ser humano, a sentir a arte como um ser vivo. Arte-Deus, que nos consome. Com o pouco amor que me deu fiz muitos retratos lindos, de grandes bocas cheias de dentes sorrindo, de brasileiros cansados se cumprimentando no calor sufocante. E você, está sentindo o seu amor? Sabe o que dizem; ama-te primeiro a si próprio para então ter a capacidade de amar bem ao outro.
Eu sei, eu sei, é difícil nessa cidade! Nesse centro urbano em que o bombardeio de informações inúteis distorce a percepção de milhões de cidadãos suados até que ninguém se lembra mais da intimidade ou da sabedoria. Em que procuramos abrigo nas ilusões, despedaçando a mente como esquizofrênicos carentes. Meu lindo, caro e tenro amigo, exemplo de compaixão pura, meu compadre, conte-me suas aflições, vim te fazer um afago. Sinto que precisa de um alívio, sinta esse meu carinho.
Não falemos agora de inspiração. Para inspirar, é preciso primeiro expirar, esvaziar a mente e o corpo dos fardos e do peso morto, dos nós nas costas e da tensão no rosto. Encontrar um velho amigo é como relaxar sobre o sol, é como mergulhar na água fria e lentamente deixar para trás os problemas. Quando se vive na cidade grande, a natureza é como um velho amigo.
E a família, como vai? (pergunta que só amigo faz) Só os amigos chegam tão perto pra saber, ou se importar. Aposto que estão todos mudados e todos iguais. Crescidos, com novos planos pra mesma vida. Novas modas, mas aquele mesmo jeitão.
E você, em breve terá filhos, não é? Nem consigo imaginar! Filhos do meu bom e velho. Eu sou terrível com crianças, é claro, não sei que lado é pra cima quando se segura um bebê. Mas talvez criançolas com seus olhos e sua paixão pela vida me fariam adaptar. Ou talvez eu desmoronaria em vê-los. Como você será com seus mininos? Estudarão no CAp ou você os levaria pra África, pra Europa ou algum lugar exótico? Será que ouvirão Led Zeppelin? Será que voarão em carros? Você lerá para eles aquele livro que te dei? Velho amigo, você será um bom pai, eu sei, seus filhos te amarão muito e vocês terão os mais gostosos momentos, as mais felizes gargalhadas. Consigo até ouvir os gritos estridentes dos monstrinhos, pulando, com felicidade natalina nos olhos enormes, e correndo pela casa as seis da manhã.
Meu velho, está se sentindo melhor? Então conte mais dos problemas se quiser, e depois acenderemos uma fogueira para esquentar os dedos. Estou aqui para ouvir-te, poxa mas que saudade eu tinha! E perante a fogueira falaremos, então, de sonhos. Para reviver os bons tempos, é o melhor tipo de nostalgia.
Tenho sonhado com densas florestas habitadas por entes folclóricos, tenho incorporado o Jim Morrison. Eu vi palhaços ouvindo Bon Jovi dentro de um carro pequeno em um estacionamento vazio. Eu vi homens de bigode grosso pisar em uvas vermelhas para fazer novos sonhos. Eu vi a chama de uma vela crescer até preencher um salão e me cegar completamente, e senti a força da Terra sacudir meu corpo feito uma árvore na ventania. Vi tudo isso acordado, com os olhos abertos.
Conte-me dos seus sonhos. O que os habita? Quais são os sons dos seus sonhos? Como são as cores? Uma vez você me falou do gosto molhado de uma maçã vermelha e branca que quebrava entre seus dentes como quebram folhas secas sobre meus pés. Acho que você incorporava o Jim Morrison naquela época. Uma vez eu sentia mais o que suas palavras descreviam do que o que minhas mãos tocavam ou meus olhos viam. Mas isso foi a muito tempo, e quantos tempos já não vivemos.
Depois da morte, só lembrarão do que fizemos em alguns poucos dias específicos. Um dia seremos todos reduzidos a algumas poucas memórias afetivas de pessoas vivendo em outro século. O que sentimos e pensamos não importa para o futuro, apenas para o nosso humor. Por isso tento lhe dar um afeto aqui, antigo e verdadeiro amigo, poeta companheiro. Te dar um abraço verbal, uma paz de espírito, uma ajudinha, um tapinha. (Mais de) metade da nossa vida se resume ao amor que damos às pessoas, e às pessoas a quem damos amor. Tenho a sorte de tão bons velhos. Tive a sorte de tão bons amores.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Epílogo do Livro de Uma Página sobre meu sonho.

Sonhei que ela voltava. Que estava aqui.
Luminosa e branca, subia ao céu perfurado. Saía do fundo do mar.
Na fila do metrô, na calçada, surgia ao meu lado.
Com aqueles olhos molhados. Ficava quieta, mas ali estava.
E sofríamos. Doía-nos e nos pesava o convívio.
Continuei pelo sonho. Por quartos de hotéis e praças, por mesas de jantar e balões de ar quente. Fiz afazeres e puxei conversa com os entes fictícios. E ela ali sempre, surgida recém-chegada.
E o sonho inteiro doeu.
Abri os olhos como se não tivesse dormido. Acordei melancólico e vazio, esburacado.
Em alguns instantes, na cama ao meu lado, minha mãe acordou e logo se pôs de pé, se pôs a vestir o trabalho. Se aprontou pra luta do dia, contra sol e cansaço. Logo já estava suada. Foi, guerreira.
E fiquei seco na cama.
Quando a lua retorna ao céu quero chorar.
E quando tento ser sol de novo, só faço queimar a pele. Secar e queimar a pele frágil de boas pessoas.
A escrita me condena, sirvo aqui a sentença. Completamente inibido. Tantas vezes negado.
Poderia morrer de solidão
Tristeza e remorso.
Fantasma me deixa em paz.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

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Na margem amarela e poeirenta da rota nove, em algum remoto e inóspito ponto entre a decadência da cidade de Reno e o refúgio de Carson City, eles desligaram o motor e saíram do carro. Wenatchee encostou-se ocioso no capô sujo e amassado do velho ford e vestiu suas luvas de couro de alces Shirasi do Wyoming, que seu avô lhe dera em um outono de muitas celebrações, anos atrás. John e George haviam despido até a pele e desçido em correria e libertação pela areia escaldante para uivar aos coiotes e aos espíritos do deserto, longe da auto-estrada. Eles voltariam com os pés esfolados em carne viva e com os corações cheios de água de cactus e novas canções. Alice havia atravessado o tapete de asfalto para mijar entre os arbustos secos e as pedras altas que ali havia, mas já voltava, balançando seus braços dóceis ao redor de si, as pernas longas e o cabelo loiro brilhando sob o sol impiedoso. Ela sempre vestia-se com bermudas curtas e camisas sem manga como se, desde o útero, ela houvesse sido divida em partes iguais aventureira e feminilidade. A tarde começara a se manifestar ao redor do carro ancorado. Além do brilho estonteante do sol, o céu trocava sua coloração diurna por tons cansados de amarelo e marrom como o couro do veado depois de seco, como o cerrado de Kansas no inverno e como os cabelos de Alice. Wenatchee limpou o suor quente de sua testa com o antebraço. Alice veio chegando sem levantar a cabeça, concentrada nas próprias mãos, que ela parecia beliscar repetitivamente. O índio não perguntou então ela disse "Cactus" e ele assentiu em silêncio. Ela encostou no capô ao seu lado, e logo em seguida pulou com um grito. "Queimei minha bunda!" ela chiou por entre os dentes, esfregando-se em consolo pelos bolsos de trás do short. Wenatchee permaneceu sem falar, mantendo sua expressão imutável de calmaria e lazer. Apesar da dor, Alice encostou novamente no carro, dessa vez lentamente. Sentiu seu corpo tremer com calafrios ao se acostumar com a temperatura do metal. "John e George estão a procura de suas perdidas almas novamente?" Wenatchee assentiu com a cabeca. "Eu mal posso esperar para ouvir." ela disse sorrindo seu sorriso de menina, com os dentes todos a mostra. "Conte-me uma história, Wenatchee. Por favor! Uma história da sua tribo que tenha sido passada a você através das gerações!" ela disse. Wenatchee a olhou profundamente então, como ele tinha mania de fazer, com seus olhos impassíveis que pareciam mergulhar dentro de seus. E então ele fitou o deserto estéril aonde os rapazes haviam corrido sem pensar duas vezes, urrando como maníacos. Ele passou longos minutos sem desviar o olhar da paisagem árida antes de iniciar seu conto. Alice esperava ansiosa, os olhos grandes tentando captar o momento como lentes de uma câmera filmadora escondida em sua mente, que gravaria cada segundo eternamente na memória como cristais preciosos. Wenatchee fechou os olhos e após um quieto e longo instante levantou os dois punhos cerrados com os braços estendidos acima de sua cabeça.
"Grande Coruja, Mãe da Floresta Juniper, sou o guerreiro Filho dos Rios, River Child, e trago a ti o corpo de meu irmão, Apanhador das Tempestades, Storm Catcher. Ele foi morto pelas mãos de um habitante de sua floresta, um que tem pinturas de guerra azuis e veste dois braceletes trançados com pele de cobra. Eu venho pedir sua permissão para adentrar sua floresta de beldades naturais, encontrar esse homem, e o desafiar a um duelo para que eu possa vingar a morte de meu irmão." E então Wenatchee jogou os braços ao solo quente como se descarregasse um grande fardo e ajoelhou-se com a cabeça curvada para baixo. Ele havia iniciado o conto. Levantou-se para continuar, concentrado por debaixo de seus olhos fechados. "O silêncio da noite ecoou pela floresta enquanto o jovem índio esperava, ajoelhado. A lua dançava por entre os pinheiros com seu longo manto branco, derramando brilho como um rio luminoso pela mata escura. O vento balançava as árvores e elas balançavam, sussurrando como as ondas ao se esfregarem umas nas outras. Muitas horas se passaram na noite. A lua ergueu-se graciosa ao topo do céu, antes de se ouvir resposta. De início pareciam as batidas de um coração, e o jovem River Child imaginou estar ouvindo o pulsar do coração da floresta. Com a cabeça abaixada ele via apenas as folhas alfinetes cobrindo o chão húmido ao redor de seus pés, mas a magnitude daquele ritmo o fez estremecer por dentro. Ao se aproximar, porém, o som se tornou mais nítido e pôde-se perceber que era, na verdade, o bater forte de enormes asas por entre as árvores. Vum. Vum. Vum. Vum. O guerreiro respirou fundo.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O fim do amor.

Os dois personagens estão na rua, em pé ao lado um do outro. Um jovem e uma jovem. Esperam o semáforo mudar para que possam atravessar. É uma manhã ensolarada, de iluminação estourada, a imagem super-exposta, de forma que tudo parece brilhar. Ao redor deles outros esperam o sinal.
-- O quê?
-- Quê?
-- Então...
-- O quê?
-- O que estou fazendo aqui?
-- Você não queria estar aqui?
-- Me diz porque.
-- Eu preciso de você. Eu preciso de você hoje.
-- Que bom. Tá bom.
O semáforo fecha e a multidão começa a atravessar, passando por eles. Ele espera um pouco, perdido em si, e então atravessam. Andam em direção à loucura e a inevitável batalha na Lapa. Andam, sem saber, em direção ao escorpião gigante, devorador de almas.

Acordo na sala de cinema, perdido na história. Eles eram amantes? E agora... espíritos? Assombrações. Se o amor é a vida, reflito no escuro, é possível findar o amor? E se o amor não for a vida, não quero a vida. Acordo persistentemente em salas de cinema, em salas de aula e fico mudo. Lá na tela os amores perfeitos, tudo cheio de vermelho, onde até a dor é gloriosa, encantadora. A chuva invade o salão pelas saídas de emergência e em um inundar erótico vêm enchendo as fileiras d'água. Nós entramos nos filmes para afogar.

O fim do amor era um arquivo .mp3 no aparelho digital que aquela garota escutava. No último banco do ônibus, os fones de ouvido a retiravam dali como uma pinça. Ela estava imersa no fim do amor. Era uma canção breve de uma linha só que se repetia inexaustivelmente. Bem menos que uma sonata. Apenas um assobio solitário, vibrante. A trazia memórias de sua avó e o apartamento em Laranjeiras. Ela escondia-se dos pais, dentro da banheira de cerâmica verde no banheiro, por não querer voltar para casa. Sempre a encontravam mas ela nunca desistia do esconderijo; sentia que aquela banheira velha e cafona a protegeria de qualquer perigo.
O apartamento de dois quartos era suficientemente comum, em sua essência. Lar de idosos, de ar mofado, reutilizado, todas as mobílias relíquias de uma época que a menina nem acreditava ter existido. Para ela, porém, cada centímetro histórico daquele lugar era um tesouro roubado, pilhado, escondido, enterrado e finalmente descoberto por ela, que se metia nos cantos como uma toupeira para tocar nas coisas e abrir gavetas.
Encontrava fotografias sem cores, manchadas e danificadas pelo tempo, em que jovens vestidos de velhos pareciam personagens do cinema. Encontrava moedas de ouro, de prata e marrom, todas em línguas desconhecidas e algumas incrivelmente valiosas (ela sabia disso pois nelas estavam escritos números como 1500 e 35000). Guardava todos os tesouros descobertos em uma gaveta no quarto de hóspedes, cobertos por um pano para não se perderem na poeira.
O maior tesouro que encontrara nas empreitadas foi uma caixa musical preta e vermelha, com uma manivela de um lado para tocar-se a música. Passava horas girando aquele braço prateado, pequeno até para as mãos de menina dela, se deleitando com as notas que cantavam em segredo só pra ela. No lado da caixa, uma inscrição: "Le Fin D'amour". Ela repetia essas palavras, tão bonitas aos seus ouvidos, as cantarolando na melodia que soava. Ainda cantava para si, mais de 20 anos depois, no último banco do ônibus que passava ali.

domingo, 13 de setembro de 2009

Ostramirim

Ostra, você é uma ostra. Você é uma pérola, tem casulo. Você é um tigre, o olho do tigre. Ostra, eu sou o reflexo. Deixe-me ser o reflexo. Mudo e preto, na superfície do lago. E você a ostra no fundo. Você o fundo do lago. Eles tocaram Led Zeppelin, justo naquela hora, ali no bar. Led Zeppelin é alma do rock. Led Zeppelin é o amor dos jovens. Onde tudo se resume e se resolve. No estouro, na efusão. E eles ligaram o rádio bem quando te vi. Assim, chamando táxi, ou esperando na porta, ali, do outro lado da rua, do outro lado da sala. Eu sentado no bar, vendo tudo preto, e você brilhando. Pérola, oceano de luz. Branco no meu preto, dano. Meu coração aberto à música xiando do rádio. A guitarra encendiando, e seus olhos gigantes. Meu coração aberto pulsou e jorrou o sangue. Sentada ali na cadeira, eu quase caindo do banco. Cara que luz pulsante, que dano.

Eu sou a loucura, ostra, e você os olhos. Ou, se você quiser ser a loucura, serei a ostra e você o fogo. Fogo que faz abrir. Abrir a boca como se abre um livro. Abrir a pele como se fosse abrigo. Abre-me, abro-te, abra-te-sésamo. Abracadabra e enfim, magia. Ou loucura. Ou magia. Para abrir os olhos como quem abre a ostra, e dentro a pérola. Abre a pérola, e dentro a magia. E usa a magia para se jogar do edifício e não tocar no chão. Fazer soar Led Zeppelin no ar, sem rádio e sem agulha, com faíscas nos dedos. Lambemos os dedos e molhamos o mundo, para tocar nas plantas, para explorar as trilhas. Ostra, no fundo, onde flanastes flanarei. Pelo menos agora, no momento ápice, primeiríssimo pico. Aqui no flagra, na descoberta, as cortinas abertas e o espetáculo. A água fria, gelada, que rouba a respiração do peito. Ostra, caí do topo do parapeito.

John says it best. He says it so hard, man.

domingo, 30 de agosto de 2009

Eu perdi você no mar, disse o homem.

-- Eu perdi você no mar, disse o homem.
-- Eu tinha asas de amor, deslizei pelas ondas e de uma crista verde lancei vôo.
-- Conheceu o céu?
-- Mergulhar nos braços do vento. No frescor azul da atmosfera. Foi como amar a Deus. Uma mulher nua no alto do céu, eu dei meu amor à Terra. Pássara, estrela, ponto luminoso no astral, de meus seios ofertei o leite como chuva ao mundo. Me transformei em uma cinzenta nuvem, cheia e linda, mãe dos meninos de rua.
-- O seu amor é tão bom, ele transborda pelos seus olhos como uma enchente, monção. Eu sempre me banhei e deixei carregar. Como uma criança mesmo.
-- Que bom que você voltou.
-- Meu coração estava seco. Eu acho que demorei tanto por não conseguir sequer acreditar que era possível meu sangue parar. Mas parou e esfriou. O amor precisa que você cuide dele como uma planta, como um bezerro ou qualquer ser vivo. Precisa de luz também. Eu desci ao fundo de um abismo onde nenhum raio alcançava.
-- O que mudou?
-- Eu vi uma menina. As pessoas passavam por mim como escolas de peixes ou folhas mortas. Eu havia desacreditado na pureza há tempo. Na escuridão não se enxerga. Mas uma menina, tão pura, sentou em frente aos meus olhos e me cegou. Como olhar para o sol, só vi luz, queimando minhas retinas e devastando os escombros dentro de mim. Limpou-me por dentro. Teias de aranha, poeira, os fantasmas, vestígios dos amores passados, o rancor... sumiram como as estrelas na manhã clara. Eu nunca saberia que tanto residia dentro de mim. Tantas entranhas.
-- A luz é boa não?
-- Limpa, doce, pura, minha, sua, tão bela, rei e rainha do universo, a luz é boa.
-- Sim.
-- Sim.
-- Vamos deitar aqui e construir uma casa?
-- Uma casa de madeira.
-- Ao pé do oceano.
-- Ela já está pronta. Vê ali, com o filho aprendendo a andar na areia?
-- Oh!
-- Não falta nenhum. Nunca faltou.
-- Falta viver, o futuro.
Ele disse, então, um lindo poema sobre o futuro. Na primeira estrofe começou a chover, na segunda um cavalo se aproximou, cavalgando pela areia, e passou em um galope forte, cheio de vida e honra inabalável. Na terceira estrofe o filho se tornou rapaz e se casou com um moço negro que sempre amou. Na quarta estrofe a chuva arrouxou e o homem e ela fugiram para o santuário da casa de madeira e os lençóis compartilharam. A última linha do poema falou-se no vento, enquanto a noite chegou como o silêncio da alma.
A Terra não vive e morre sozinha.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

-- Olá
(e ele sorri)
-- Quem é você?
-- Eu... sou o escritor.
-- Sobre o que você escreve?
-- Eu escrevo a história do fugitivo.
-- Do que ele está fugindo?
-- Da dislexia das pessoas... dos espaços pequenos.
-- Qual o seu nome?
-- Não sei, quando o encontrei ele já estava fugindo.
-- Então como sabe do que ele está fugindo?
-- Da mesma forma que todos escritores sabem o que se passa com seus protagonistas.
Eu chutei.
-- Umm.
-- E você? Aonde você vai de noite?
-- A noite? Eu vou para o inferno.
-- Faz amigos por lá?
-- Muitos, mas... pouco confiáveis.
-- A sim.
E você é feliz sem mim?

quarta-feira, 17 de junho de 2009

O que é preciso dizer, mas não desentala.

Começa molhado. Começa com explosões elétricas no céu. Difícil me expressar sem saber o que quero dizer. Queria montar a cena e o sentimento e nos estender por montagens incontáveis de quatro minutos. No espaço. Talvez assim fosse possível a compreensão de ambos. Talvez, no acidente das inúteis falas, falasse o que é necessário, e quem ali ouvisse tomaria pra si. Eu na cama vazia, tão desinteressante. Na cama vazio. A mim vêm as vozes. Mas não informam nem auxiliam. As vozes dos velhos amigos, nos nostálgicos momentos que perdi. O que há para se falar se não que perdemos tudo. Os amigos, a mãe, o cachorro, o irmão, o professor. Perdemos até nós mesmos. Então fica o chão gelado no pé descalço, os planos para amanhã, a lista de compra, as vozes. Sorte, daqueles que sabem o que querem. Destemidos, prontos a tomar a vida. Vejo tão claramente o desperdício que é passar os dias pensando no que se quer, definindo o que não se quer, ao invés de tomando o que se quer. Não quero ferir ao próximo. Não quero deixar de contribuir. Quero tomates na feira, banho de cachoeira. Ou desperdício de cérebro, emoção barata. É a estrada para o anulamento da alma, querer e não fazer. Se privar o desejo. O que quero dizer, mas não desentala, é que eu quero amor. Quero a sua chuva em mim, para não ficar seco. Quero a chuva, para dormir tranquilo. Explosões elétricas no céu. Quero ser a mata virgem do Rio. Molhado começo. Sorte, daqueles poucos. Sorte, daqueles outros.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

A mentira.

Meu amor, as velas queimaram a casa. Jorrou cera quente pelo corredor. Eu vi tudo na tv. Sucumbi ao gosto de plástico frio da tela. Minha língua gosta do frio e da eletricidade. Que assalto na via dutra com mão suada, "É a paz armada". A vitrola toca toca o som dos acordados e a cidade gira como o disco preto pelos meus olhos bêbados, vou cair nos carros. Ela tirou mesmo a porta do carro? E empurrava pra fora quem não gostasse? Só vi a faca em cima da mesa, como a minha consciência e meu futuro desperdiçado. Você poderia ter feito algo da sua vida, se candidatado. "Eu só queria ser feliz". Ninguém é feliz. Chute na sua cara. As moedas todas caíram ao chão metálico em um tormento de cilintismo. Porque ali o chão havia de ser feito de metal? Temo a minha imagem refletida por baixo, sinto que afogarei nela. Você, minha imagem ladra, sempre piscando pra mim, me acusando de deflagrá-la. Ele pôs fogo na bandeira americana e então sugeriu que eu tomasse jeito na vida. Penteasse esse ninho de cabelo duro, ajeitasse a blusa amassada. Cuspi do topo do prédio e tentei assistir meu fluido sucumbir a morte como queria eu mesmo fazer. Todos querem uma segunda chance, ela disse, e a todos eu daria menos você. Insuportável e imutável e incombinável e relativamente fácil pra qualquer outra pessoa. Os fusíveis estouraram em faíscas e luz perdida e meus olhos se apagaram como a lousa no final do dia. Vou deslizar ao fundo da banheira pra ouvir meu nome chamado do infinito. This is the End my friend. (cantava o conde drácula). "Die Die Die. I can't.". Oh tortura, ó torta de limão. Luta de classes. E também a minha classe, estendida em um barbante tão fino quanto sua paciência. O fiapo da vida é apenas a linha de partida. O navio afunda a tripulação se torna fantasma. Eu vi tudo na tv. Enquanto dormia. Mentira você nunca dorme. Você nunca dorme. Você nunca dorme. Você nunca dorme. Você nunca dorme. Você nunca dorme. Mentira, você nunca dorme.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

A igreja e o corpo que deixaram na porta.

Eles vêm a mim como a morte. Como uma madame, um vestido preto e pernas pálidas em cima do piano. Eles me dizem, com o estilo nos bolsos e nos penteados, tudo que quero ouvir da boca de uma amante. Um gemido de prazer, mancha de estrago nos olhos maquiados. Cocaína no banheiro, eles dizem diamantes e afagos, como prazeres. Eu puxo forte o vento pelos dentes pra ser duro pra ela. Um jogo maníaco e depravado em que faço-me impassível e imoral. Ajoelha-te e pede perdão. E ela aquiescente a cada palavra, o fogo nos lábios molhados, os olhos pedantes. Eles vestem ternos e gingam como o jazz. Eu quero um terno de corte moderno. Um escritório vazio, paredes de vidro, no topo do mundo, e ela deitada em cima da mesa, vestido preto largado no chão. Eles sussurram no meu ouvido que tudo é possível, como o doce da serpente. Vou mastigar-te e delirar no doce. Duro, impassível, filho da puta. Enfiarei a mão em você e apertarei teu coração pra te ver derreter como água quente pela minha pele. Vai chover no quarto de hotel escuro. Vai chover como tempestade, hurricane, furacão. Nuvens titânicas circulando nosso lascivo hedonismo. Os trovões vão gritar com ela. Já vi esse filme, conheço esse clímax. Com notas de cem dólares na cabeceira e as listras da luz acesa pelas fendas da porta do banheiro. A cocaína e as marcas frescas nas minhas costas, no rosto dela, nas pernas dela, nos peitos dela e nas costas dela. Eles me prometeram tudo e paguei caro. Nos espelhos, por trás das linhas brancas, vejo meu rosto enrijecido, cheio de sombras. Deixei o adolescente que sustentava em mim na porta do inferno e comi diversas secretárias jovens e auspiciosas na descida de elevador. Agora bebo tequila da barriga de uma loirinha com menos de 20 anos que me promete tudo com os olhos. Aceitei o libidinismo do mundo. Aceitei as políticas e as corporações. Minha vida é dividida em sucessos e... Bem o resto não me importa. Meu carro brilha como meus óculos escuros. Não sei e nem me importo o nome dela, a gente desliza em perdição ao banco de trás. Ela só sabe o nome do meu carro e a fineza da minha voz. Chove dentro do carro. Chove baldes de água fria que bate e ondula entre nossos corpos nus. Chove durante todos os dias, como se o céu chorasse por mim. Pelo meu adolescente que deixei morto com tiro na garganta. Chove como uma ópera, lágrimas pelo rosto do contratenor. Chove como na floresta, verde como o dinheiro, molhada como meu suor falso. Ela é falsa e ordinária, a desprezo. Mas não deixo de esperar o clímax com gosto pela auto-satisfação. Meu sorriso é uma ironia da minha vida inteira enquanto ela cai ofegante no banco de couro, em estupor póstumo. E abro a porta do quarto enquanto visto o terno, andando com meus passos de jazz ao elevador. A luz elétrica e a câmera de vigílio do motel me escoltando de volta a donde vim. A porta do elevador abre e dentro dele, como havia de se esperar, uma secretária, ruiva, com a saia curta e a blusa justa. Descendo. Sempre descendo.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Fragm - tos

Nada batia por dentro. O mundo deslizava ao meu redor ininteligivel, como letreiros neon na chuva, ignoravel como um quadro impressionista. Meus olhos janelas ao desespero e meus oculos uma cela de vidro impenetravel. Fingindo gloria como um bobo alegorico. Mal emitindo pulsos. Como a bateria fraca que retarda o brinquedo e se precisa bater para ver resposta. Como uma vida monstruosa em uma capsula impecavel. Frigido. Moribundo.

Nela havia amor como o oceano. E a marisia brincava nos cabelos dela de verao e fortaleza. Ela veio do inicio, despreocupada, colhendo as flores da vida eterna, como se nao houvesse maldade no mundo. Ela cantava cancoes de amor enquanto estudava e um dia acordaria para se descobrir revolucionaria. Atuante no movimento, indiferente a politica, ela desconhece o egoismo e nao sabe deixar de ajudar, deixar de alimentar a fogueira de vida humana no mundo.

Ela era completa como uma semente no solo fertil. E eu apenas um frag -mento.

domingo, 10 de maio de 2009

i want you. i want you so bad. i want yooou. i want you so good.

o jatahy gosta de ketchup como eu e voce gostamos de ketchup?
A, eu acho que estou com gripe suina. Ou talvez eu apenas esteja de ressaca. Passei muito mal ontem a noite. Dormi durante horas no banheiro da festa com a porta trancada.
entao. sao 4 da manha e eu estou acordado ha muito tempo sem fazer nada pq nao consigo dormir. O meu ipod resolveu tocar Construcao e eu deixei. A poesia do chico buarque eh igual do cara do Neutral Milk Hotel. Os dois sao cronicos depressivos. Beijou sua mulher como se fosse a unica. Mas ela era apenas uma em vinte e quatro. E tropecou no ceu como se ouvisse musica. one day we will die and our ashes will fly from the aeroplane over the sea. Ergueu no patamar quatro paredes magicas. Two-headed boy put on sunday shoes and dance round the room to accordion keys.
eu comprei uma pizza meia noite e um homem atravessou a cidade na chuva para me entrega-la. Apenas nos EUA o entregador de pizza dirige um audi. Ouvi alguem se referir ao portugues como se fosse uma melodia. Achei incrivel. Ele falou que a musica tinha uma melodia como o portugues ou algo do genero. Eu achei demais. Na festa em que eu me estraguei havia uma fogueira e eu queria entrar nela como uma piscina. Uma piscina pegando fogo. Tem uma cena em "True Lies" em que o arnold schwazenegger pula em uma piscina um segundo antes do bandido acender toda a superficie dela em chamas. Seria uma aventura e tanto submergir nas profundezas escuras ao embaixo de um espelho de fogo. A nossa geracao se vende tao facil as coisas que achamos que descobrimos primeiro. A cidade eh um grande prostibulo. Um americano estava tocando violao e eu falei, cara, voce quer parar de tocar, e ir aproveitar a festa? Ele falou: Dude, i don't wanna talk to the people. They're all the same. They're all american, i hate them. You're cool because you're from Brazil, that's okay. E continuou a tocar. E entao ele tocou In My Life e eu tive que sair de perto porque toda vez que ouco essa musica eu quase choro. Havia uma fogueira e ao redor da fogueira apenas a escuridao de campos e gramados vazios e chatos. Dela poderia vir ou ir qualquer figura despercebido. Do negro poderia surgir um estranho completo e da festa poderia se perder ao escuro um bebado completo.
Eu cresci sozinho, uma pessoa sozinha. Mas eu descobri hoje que nao consigo viver sem compartilhar do mundo com uma pessoa. Uma ou mais. Eh uma grande descoberta pra mim. eu estou criando vinculos. Que sensacao unica. Estar no palco, em um show de rock, com o microfone, e todos meus amigos no escuro por tras dos holofotes, e todos meus amigos com instrumentos ao meu redor esperando eu dizer a eles qual musica tocar. Eh um grandioso sentimento. Eh como uma metafora para o meu sentimento da vida inteira. Eu no palco sou igual eu fora do palco, falando para mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Explicativo, incerto e errante. there's thunder and there's lightning a thousand miles away. Eu nao sei como eu acabo tendo tantos amigos que sao tao diferentes de mim. Muito diferentes mesmo. As vezes me sinto o oposto polar completo de cada pessoa que fica em pe ao meu lado. Mas eu tento ser um oposto polar complementar. Um semi-circulo que completa a figura da lua cheia. Vinculos... Palavra metalica e moderna no formato. Quase uma escultura de metal art-nouveau. Eu quero pular em cima da escultura como em um touro mecanico e abraca-la como uma menina abraca um grande urso de pelucia. O aniversario do meu irmao foi incrivel. A gente foi ao que eu posso apenas descrever como o Paraiso de todo menino crianca. Las Vegas para as criancas. Havia karts, uma piscina com barcos motorizados que se dirige que nem kart. Aquela brincadeira de armas, lasers e luzes piscantes no peito. Mil brinquedos do genero daqueles que tem em Chico Cheese que voce brinca e ai saem bilhetes que voce pode trocar por um brinquedo escroto na vitrine. Guitar Hero. DDR. Um simulador de realidade virtual. Um daqueles brinquedos compostos por tubos de plastico e escorrega daquele tipo em que se perde crianca, o maior que eu ja vi. E ainda por cima havia pessoas com grandes roupas de urso e de animais diversos andando por ai enganando as criancinhas. O Joshua se divertiu muito. Foi muito muito muito bom. De certa forma, eh como se eu tivesse vindo aqui para estar presente no aniversario dele. Ele vai se lembrar daquele aniversario pelo resto da vida dele. E eu estava la. Eu dei uma bola de basquete pra ele. Meu pai deu um poster dos superherois pra ele colocar no quarto e um videogame de mao e um taco de beisebol macio que eh pintado pra parecer um sabre de luz. Ele tambem ganhou muitos kits de pintura porque todo mundo em Boulder eh artista. Ele ganhou um kit de giz de cera, do tipo que voce usa pra desenhar no asfalto, que vem com um oculos 3d e que voce ve os seus desenhos em 3D. Ele vestia uma blusa azul com um adesivo enorme amarelo escrito: I'm 5 Today. E eu vou sentir muita falta dele quando eu retornar ao Brasil. "Lost in Boston, drinking rum and chocolate"
Sao 5 da manha. Porra de insonia. Maldita companheira. Maldita erotica sedutora e predadora. Ela me pendura nas paredes tao facilmente. Me pendura do teto como um ventilador e eu giro lentamente como uma pinhata, esperando o sol vir me arrebentar, esparramar as balas na minha barriga por todo o chao. O ceu esta da cor da sua pele. Eu gosto tanto de como voce eh pequena dentro da minha cama. Toda se cobrindo, ouvindo musica, ligando e desligando a minha lampada. Se sentindo segura. Comigo, quando voce se sente segura, voce sorri e dorme e me abraca. Com os seus amigos voce sorri um outro sorriso e bebe ateh tudo virar um fluido ininteligivel de luzes neon, vozes incoerentes e musica de festa. Mas voce soh consegue fazer um de cada vez, eh tao fofa. Como um gatinho com olhos enormes tentando pegar as coisas com as patas minimas. Sabe, eu decidi que estou sendo horrivelmente cruel falando pra voce esperar por mim e falando pra voce nao amar mais ninguem. Eu sei que voce gosta de ouvir, e eu gosto de falar. E eu gosto de querer isso. Mas eu nao vou falar mais. Porque eh cruel. Eu te amo. Bom dia. Ja sao 8 da manha no Rio mas voce deve estar em profundo sono. Como foi a festa? Como vai a Mel? Esta fazendo sol e voces vao na praia?
Eh hilario os Violent Femmes terem um cd de Greatest Hits porque todos os hits deles estavam no mesmo cd.

domingo, 19 de abril de 2009

O girino que entrou em Deus

Meu coração é perfeito
Estou prestes a morrer de vida
O mundo que me persegue
é um balão desafiando o estouro
Conheço todas as almas que há
Conheço seu gosto d'água
Os momentos pedem minúcias
gestos, nomes e rostos
Mas o tempo só conhece a grandeza
A união húmida das coisas
Faz frio em Saturno
e eu sou pequeno
Há fraturas demais na mente
que chamo de emoções
São estrelas que avistei das montanhas
uma vez anos atrás
Antes de romper a bolsa
antes do grito por oxigênio
De repente retornei ao líquido
pra nadar entre as esferas
De forma que não consigo
retornar ao verso
retornar à terra
Está chovendo.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

O Gorgonzola, o Brie, o Roquefort e o Montesquieu

Jaqueline, feche a porta querida, para que o zéfiro de final de outono não invada. E traga o vino e as uvas frescas que colhestes na madrugada, a secura do jantar irrita o sóbrio paladar. Jaqueline, busque depressa as luvas brancas de Mademoiselle Croissant, ela terá de nos deixar a essa hora blásfema par non deixar que os cavalos adoeçam com a friagem de la nuit. Oh Louise, permaneçoir por não mais que trinte minuits, brindemos a tu imortal juventud! Bien bien, se não será convencido, vá! Por não torturar a melancolia do abandono. Jaqueline! As luvas brancas!

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Morto Vivo

Ele acordou sem expressão em seu rosto pálido. Ele acordou em uma hora vaga entre a manhã e a tarde e através das lentes tingidas de seus oculos escuros via o teto em bege escuro, e o ventilador monotono ainda girando persistente, lentamente balançando como se cada giro fosse um esforço. Ele (o rapaz) acordou e não fez força para abrir os olhos ou desentorpecer sua expressão. Não havia sons nenhuns, além do zumbido do ventilador. O teto e o ventilador, sépia, e o menino deitado ali sem a mínima vontade de começar a pensar. Sentou-se na cama ainda sem ligar o cérebro. Deixou o silêncio da casa ecoar por dentro de si. Seu cabelo quando acordava parecia que acabara de ser arrumado para um show de rock, todo espantalhado. O rapaz se contemplou antes de sair do quarto. No quarto havia apenas a cama, o teto, o ventilador e ele. Vestia seu cabelo espancado, uma camisa dos beatles velha e amassada, um samba-canção branco com coraçoes vermelhos e seus óculos escuros tingidos de marrom que deixavam o mundo em sépia. O suficiente, pensou. Saiu do quarto e espirrou porque no corredor escuro fazia mais frio. Esticou a mão esquerda à parede e deixou que ela o guiasse até o fim do corredor, até a cozinha, onde abriu todos os armários debaixo da pia até achar a caixa colorida do cereal matinal. Abriu a geladeira, abriu mais armários, sem abrir a boca ou os olhos completamente. Logo possuía uma tijela cheia de leite e cereais fibrosos, uma colher especialmente redonda e côncava e um copo de vidro alto cheio de cerveja quente e gelo. Derramou leite no chão e, quando esticou o braço para tentar buscar o pano, derramou cerveja também. Então deixou pra lá tudo e se encostou contra a bancada de madeira pra comer, molhando sua meia no estrago. Tomou um gole grande e demorado do copo pra molhar a garganta. O gosto amargo lhe contorceu o rosto, lhe deixou com careta, o nariz amassado e a língua pra fora. Gosto de saliva seca que passou a noite na boca dele e de cerveja seca que deixaram a noite inteira aberta na mesa. Cheiro de água suja e gosto de vômito. Encolherou o cereal e, pingando leite, enfiou na boca. Cospiu em seguida, no chão mesmo, enojado. Igualmente amargo, o leite devia ter estragado. O rapaz nem se lembrava de ter comprado leite. Olhou para a tijela e o líquido branco suspeito. Cheirou. Não cheirava a nada. Comeu um cereal e cuspiu novamente. Gosto de vômito. Jogou a tijela cheia, a colher redonda e o copo de cerveja dentro da pia de metal. O que ele queria mesmo era uma boa carne. Vermelha e suculenta. Um bife, quase cru, com sangue escorrendo ainda. Lembrou de uma cena em um filme que havia visto em que um homem matava um búfalo e em seguida cortava um pedaço de sua carne roxa e molhada para comer ali. Ainda quente com a vida pulsante do animal. O rapaz sentiu então grande fome e pena que não haviam búfalos no Rio de Janeiro. O semelhante mais próximo que ele conseguiu imaginar eram os macacos pregos na floresta da Urca ou os cavalos de Paquetá. Ainda haviam cavalos em Paquetá?

segunda-feira, 30 de março de 2009

Abismo

Agachado com os cotovelos nos joelhos, Maio inclinava-se em direção ao chão, aproximando seu rosto queimado de sol às areias e pedras vermelhas daquele terreno seco. Coçava sua barba ruiva com os dedos cicatrizados sem desviar o olhar daquela terra surrada e há tempos miserável.
-Vivei…
Seus lábios rachados mal lembravam as sílabas.
-Vivei.
Sua oração roçava no calcário com a hipocrisia do orgulho enrijecido.
-Vivei. Pelos infernos donde viestes, vivei. Pelas putas que vos pariram, que o diabo e a eterna maleficência me tomem e me rasguem o ser. Vivei. Vivei ao menos por Julieta. Pobre linda Julieta que casará nua e assustada sem nome que dignifaça o papel. Vivei, merda!
O abandono do sol branco batia à porta e no platô empoeirado os demônios da ilusão perpétua já despertavam sedentos. Maio sacou sua adaga improvisada, feita no ardor a partir d’uma pedra de face estreita que havia alisado feito lâmina. De hábito, se pôs na espreita sem precisar do desagacho. Tencionou as costas vermelhas em seus nós sofredores. Eriçou as orelhas pontiagudas e o cabelo sangrento. As cores do por do sol traziam frio desolado e selvageria. Maio contou 13 que ele mesmo havia nomeado. Imbatíveis e sarcásticas, as sombras já rastejavam em círculo ao redor de seu corpo, na maioria ratos e menores criaturas procurando ou abandonando suas tocas. Olhos brancos brilhavam na escuridão como estrelas esfomeadas na transformação macabra do crepúsculo. Maio voltou-se a seu comando iludido das ignóbeis rochas vermelhas.
-Pela fecunda misericórdia, pela mão que afaga. Pela Julieta. Não deixai-me morrer em vão.
A luz dourada e roxa já quase toda dissolvera-se na escuridão.
-Não fui político com a multidão, sempre discursei da honestidade, bebi d'água limpa do coração. Se fui cobra ou esperneei, se causei a ruína, não foi por índole ou sagaz feitio. Se houve, foi pela turva visão ou pela fé ingênua. Vivei. Fazei de meus fortes perdas, extirpai-me o tato ou cortai-me a jugular, mas vivei e salvai minha filha. Pelo oásis que transforma o infiel, pela salvação pura. Ego solvo vos ex is Terra. Servo suus decorus vita.
Começou então o ruído. Inaudível de início, cresceu até ser claramente discernível. O arrasto de pedras, o rachar das rochas, cresceu até a areia grossa tremer. Vibrando e rolando, a superfície arenosa começou a se estalar em erupções. Trovejante, o chão ergueu-se em ruptura como um edifício nascente, se afastando de Maio que caira no pó em admiração incrédula. Uma grande fenda abriu à sua frente e o corte foi desmoronando, carregando com si as pequenas pedras a quais rogava. A cacofonia do movimento das placas de minério e cálcio ensurdecia-lo. Tentou escapar em surto, com as mãos esfoladas agarrando-se a Terra, mas o abismo crescia como a crista de uma onda e a beirada desaparecia rapidamente. Até que Maio, ainda jogando os braços adiante em fúria, sumiu também. Nesse instante a rocha que escalava aos céus como uma construção urbana caiu também. Despencou para frente com a força titânica das montanhas. Por cima do abismo. Explodiu tenebrosamente contra a outra parede do desfiladeiro. Afundou tudo como areia movediça e uma nuvem vermelha formou-se. O pó cor de abóbora preencheu o ar como um copo d’água, diluindo, engolindo impiedosamente. Restou apenas o pó. Finalmente a noite chegara ao deserto.