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segunda-feira, 30 de março de 2009

Abismo

Agachado com os cotovelos nos joelhos, Maio inclinava-se em direção ao chão, aproximando seu rosto queimado de sol às areias e pedras vermelhas daquele terreno seco. Coçava sua barba ruiva com os dedos cicatrizados sem desviar o olhar daquela terra surrada e há tempos miserável.
-Vivei…
Seus lábios rachados mal lembravam as sílabas.
-Vivei.
Sua oração roçava no calcário com a hipocrisia do orgulho enrijecido.
-Vivei. Pelos infernos donde viestes, vivei. Pelas putas que vos pariram, que o diabo e a eterna maleficência me tomem e me rasguem o ser. Vivei. Vivei ao menos por Julieta. Pobre linda Julieta que casará nua e assustada sem nome que dignifaça o papel. Vivei, merda!
O abandono do sol branco batia à porta e no platô empoeirado os demônios da ilusão perpétua já despertavam sedentos. Maio sacou sua adaga improvisada, feita no ardor a partir d’uma pedra de face estreita que havia alisado feito lâmina. De hábito, se pôs na espreita sem precisar do desagacho. Tencionou as costas vermelhas em seus nós sofredores. Eriçou as orelhas pontiagudas e o cabelo sangrento. As cores do por do sol traziam frio desolado e selvageria. Maio contou 13 que ele mesmo havia nomeado. Imbatíveis e sarcásticas, as sombras já rastejavam em círculo ao redor de seu corpo, na maioria ratos e menores criaturas procurando ou abandonando suas tocas. Olhos brancos brilhavam na escuridão como estrelas esfomeadas na transformação macabra do crepúsculo. Maio voltou-se a seu comando iludido das ignóbeis rochas vermelhas.
-Pela fecunda misericórdia, pela mão que afaga. Pela Julieta. Não deixai-me morrer em vão.
A luz dourada e roxa já quase toda dissolvera-se na escuridão.
-Não fui político com a multidão, sempre discursei da honestidade, bebi d'água limpa do coração. Se fui cobra ou esperneei, se causei a ruína, não foi por índole ou sagaz feitio. Se houve, foi pela turva visão ou pela fé ingênua. Vivei. Fazei de meus fortes perdas, extirpai-me o tato ou cortai-me a jugular, mas vivei e salvai minha filha. Pelo oásis que transforma o infiel, pela salvação pura. Ego solvo vos ex is Terra. Servo suus decorus vita.
Começou então o ruído. Inaudível de início, cresceu até ser claramente discernível. O arrasto de pedras, o rachar das rochas, cresceu até a areia grossa tremer. Vibrando e rolando, a superfície arenosa começou a se estalar em erupções. Trovejante, o chão ergueu-se em ruptura como um edifício nascente, se afastando de Maio que caira no pó em admiração incrédula. Uma grande fenda abriu à sua frente e o corte foi desmoronando, carregando com si as pequenas pedras a quais rogava. A cacofonia do movimento das placas de minério e cálcio ensurdecia-lo. Tentou escapar em surto, com as mãos esfoladas agarrando-se a Terra, mas o abismo crescia como a crista de uma onda e a beirada desaparecia rapidamente. Até que Maio, ainda jogando os braços adiante em fúria, sumiu também. Nesse instante a rocha que escalava aos céus como uma construção urbana caiu também. Despencou para frente com a força titânica das montanhas. Por cima do abismo. Explodiu tenebrosamente contra a outra parede do desfiladeiro. Afundou tudo como areia movediça e uma nuvem vermelha formou-se. O pó cor de abóbora preencheu o ar como um copo d’água, diluindo, engolindo impiedosamente. Restou apenas o pó. Finalmente a noite chegara ao deserto.

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