Páginas

domingo, 29 de junho de 2014

As Ovelhas

Somos ovelhas, carneiros. Temos pele de lã. Vejo um retrato meu de criança: "Esse aqui tinha tanta esperança". Ando pelo bairro sozinho, desafiando a calçada. Desafio o mundo e as voltas que dá, depois me retraio a minha pequenice. Somos ovelhas, carneiros e cabras. Somos notas musicais preenchendo o espaço. As ruas são nossa caixa acústica e entramos e saímos de tom. Formamos harmonias com os amigos e ao longo dos anos vamos compondo melodias juntos. Compasso aqui, compasso ali. Aquela estrofe no colégio, aquele refrão nas mesas dos bares. Somos músicos desajeitados, improvisando em instrumentos ocos. Baixei na internet o canto de uma baleia, pra ouvir nos dias de chuva. Cinza no céu, poças escuras no chão e o eco submarino de uma amiga, flutuando pelas profundezas e me chamando pro fim do mundo. Me chamando pra nadar com ela pelo infinito azul e esquecer. Às vezes fecho os olhos enquanto caminho, pra sentir aquela excitação do perigo.  Nunca bati em nada com os olhos fechados. Bato sempre nas coisas com eles abertos. Só sei me soltar de minhas ânsias quando deito na volúpia da cama. Minha cama é como um lago arenoso; águas turvas onde desapareço à noite. Quando o peso de ser humano desliza pelos meus membros úmidos e minha alma cristalina estende galhos translúcidos ao infinito e ao mistério profundo. O mistério profundo é a música que toca no fundo do silêncio absoluto. É a coruja invisível na mata, no fundo das trevas da noite. A coruja que chama meu nome, em línguas que só os animais conhecem. Se ao menos eu falasse a língua profética das corujas, dos insetos elétricos, das paredes da madrugada, das castanheiras e dos quero-queros, das marés noturnas e da lua cheia. Se ao menos eu vivesse o amor pleno, que sei que habita em mim, ao invés dessa consciência auto-deflagrante, que me promete apenas a escravidão. Porque me vejo em todas as pessoas e coisas do mundo, menos no espelho. No espelho há um fantasma magro que me suga a vitalidade com os olhos, e toda vez que o vejo envelheço um pouco. Sei que ele continua ali quando fecho os olhos, e essa é a macabra história de ser a mim mesmo. Que nunca entrarei nessa cama ou nessa terra encharcada de chuva. Nunca serei o que meus pais querem pra mim, o que meus irmãos vêem em mim ou o que meus conhecidos suspeitam sobre mim. Serei apenas um quase. Nem aqui concretamente, nem no espelho inteiro. Fraturas de tudo o que me disseram. Sou milhares de crianças com olhos gigantes e a boca meio-aberta. Uma pra cada animal que já vi latir, galopar, respirar, ou emitir palavras enigmáticas nos cantos vívidos da selvageria. Vejo a natureza do outro lado do vidro, e eu, deste, preso à minha indignada raça. Aos humanos que compreendo menos do que compreendo as corujas, mas são meu inexplicável destino. Então, finjo que me agrada. Faço-me indignado. Apresso-me a aprender os signos, acertar as palavras. Apesar de minha criança entender cada vez menos e se isolar de mim, monto-me em teorias e as passo aos próximos. Minha tara sádica é passar conhecimentos adiante; desanuviar mentes ingênuas, roubar-lhes um pouco da maravilha de um mundo inocente. A vingança mais discreta de todas e a satisfação mais amarga. Mas, em geral, eu acompanho a corrida. Essa corrida humana, louca e desesperada ao futuro. Não sei se é fuga do passado sangrento ou ânsia pela virgindade do futuro, mas não há pausas ou descansos. Tento entrar na linha. Seguir o ritmo. Preencher as lacunas. Corresponder às expectativas. Entregar a dissertação. Apresentar a peça. Fazer a entrevista. Agradecer os aplausos e partir silenciosamente. Tomar meu banho e dormir. Me lavar desse mundo e deixá-lo. Nunca mais ver no espelho a criatura muda dos olhos pretos. O limite de minha existência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário