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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O fim do amor.

Os dois personagens estão na rua, em pé ao lado um do outro. Um jovem e uma jovem. Esperam o semáforo mudar para que possam atravessar. É uma manhã ensolarada, de iluminação estourada, a imagem super-exposta, de forma que tudo parece brilhar. Ao redor deles outros esperam o sinal.
-- O quê?
-- Quê?
-- Então...
-- O quê?
-- O que estou fazendo aqui?
-- Você não queria estar aqui?
-- Me diz porque.
-- Eu preciso de você. Eu preciso de você hoje.
-- Que bom. Tá bom.
O semáforo fecha e a multidão começa a atravessar, passando por eles. Ele espera um pouco, perdido em si, e então atravessam. Andam em direção à loucura e a inevitável batalha na Lapa. Andam, sem saber, em direção ao escorpião gigante, devorador de almas.

Acordo na sala de cinema, perdido na história. Eles eram amantes? E agora... espíritos? Assombrações. Se o amor é a vida, reflito no escuro, é possível findar o amor? E se o amor não for a vida, não quero a vida. Acordo persistentemente em salas de cinema, em salas de aula e fico mudo. Lá na tela os amores perfeitos, tudo cheio de vermelho, onde até a dor é gloriosa, encantadora. A chuva invade o salão pelas saídas de emergência e em um inundar erótico vêm enchendo as fileiras d'água. Nós entramos nos filmes para afogar.

O fim do amor era um arquivo .mp3 no aparelho digital que aquela garota escutava. No último banco do ônibus, os fones de ouvido a retiravam dali como uma pinça. Ela estava imersa no fim do amor. Era uma canção breve de uma linha só que se repetia inexaustivelmente. Bem menos que uma sonata. Apenas um assobio solitário, vibrante. A trazia memórias de sua avó e o apartamento em Laranjeiras. Ela escondia-se dos pais, dentro da banheira de cerâmica verde no banheiro, por não querer voltar para casa. Sempre a encontravam mas ela nunca desistia do esconderijo; sentia que aquela banheira velha e cafona a protegeria de qualquer perigo.
O apartamento de dois quartos era suficientemente comum, em sua essência. Lar de idosos, de ar mofado, reutilizado, todas as mobílias relíquias de uma época que a menina nem acreditava ter existido. Para ela, porém, cada centímetro histórico daquele lugar era um tesouro roubado, pilhado, escondido, enterrado e finalmente descoberto por ela, que se metia nos cantos como uma toupeira para tocar nas coisas e abrir gavetas.
Encontrava fotografias sem cores, manchadas e danificadas pelo tempo, em que jovens vestidos de velhos pareciam personagens do cinema. Encontrava moedas de ouro, de prata e marrom, todas em línguas desconhecidas e algumas incrivelmente valiosas (ela sabia disso pois nelas estavam escritos números como 1500 e 35000). Guardava todos os tesouros descobertos em uma gaveta no quarto de hóspedes, cobertos por um pano para não se perderem na poeira.
O maior tesouro que encontrara nas empreitadas foi uma caixa musical preta e vermelha, com uma manivela de um lado para tocar-se a música. Passava horas girando aquele braço prateado, pequeno até para as mãos de menina dela, se deleitando com as notas que cantavam em segredo só pra ela. No lado da caixa, uma inscrição: "Le Fin D'amour". Ela repetia essas palavras, tão bonitas aos seus ouvidos, as cantarolando na melodia que soava. Ainda cantava para si, mais de 20 anos depois, no último banco do ônibus que passava ali.

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