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sexta-feira, 20 de novembro de 2009

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Na margem amarela e poeirenta da rota nove, em algum remoto e inóspito ponto entre a decadência da cidade de Reno e o refúgio de Carson City, eles desligaram o motor e saíram do carro. Wenatchee encostou-se ocioso no capô sujo e amassado do velho ford e vestiu suas luvas de couro de alces Shirasi do Wyoming, que seu avô lhe dera em um outono de muitas celebrações, anos atrás. John e George haviam despido até a pele e desçido em correria e libertação pela areia escaldante para uivar aos coiotes e aos espíritos do deserto, longe da auto-estrada. Eles voltariam com os pés esfolados em carne viva e com os corações cheios de água de cactus e novas canções. Alice havia atravessado o tapete de asfalto para mijar entre os arbustos secos e as pedras altas que ali havia, mas já voltava, balançando seus braços dóceis ao redor de si, as pernas longas e o cabelo loiro brilhando sob o sol impiedoso. Ela sempre vestia-se com bermudas curtas e camisas sem manga como se, desde o útero, ela houvesse sido divida em partes iguais aventureira e feminilidade. A tarde começara a se manifestar ao redor do carro ancorado. Além do brilho estonteante do sol, o céu trocava sua coloração diurna por tons cansados de amarelo e marrom como o couro do veado depois de seco, como o cerrado de Kansas no inverno e como os cabelos de Alice. Wenatchee limpou o suor quente de sua testa com o antebraço. Alice veio chegando sem levantar a cabeça, concentrada nas próprias mãos, que ela parecia beliscar repetitivamente. O índio não perguntou então ela disse "Cactus" e ele assentiu em silêncio. Ela encostou no capô ao seu lado, e logo em seguida pulou com um grito. "Queimei minha bunda!" ela chiou por entre os dentes, esfregando-se em consolo pelos bolsos de trás do short. Wenatchee permaneceu sem falar, mantendo sua expressão imutável de calmaria e lazer. Apesar da dor, Alice encostou novamente no carro, dessa vez lentamente. Sentiu seu corpo tremer com calafrios ao se acostumar com a temperatura do metal. "John e George estão a procura de suas perdidas almas novamente?" Wenatchee assentiu com a cabeca. "Eu mal posso esperar para ouvir." ela disse sorrindo seu sorriso de menina, com os dentes todos a mostra. "Conte-me uma história, Wenatchee. Por favor! Uma história da sua tribo que tenha sido passada a você através das gerações!" ela disse. Wenatchee a olhou profundamente então, como ele tinha mania de fazer, com seus olhos impassíveis que pareciam mergulhar dentro de seus. E então ele fitou o deserto estéril aonde os rapazes haviam corrido sem pensar duas vezes, urrando como maníacos. Ele passou longos minutos sem desviar o olhar da paisagem árida antes de iniciar seu conto. Alice esperava ansiosa, os olhos grandes tentando captar o momento como lentes de uma câmera filmadora escondida em sua mente, que gravaria cada segundo eternamente na memória como cristais preciosos. Wenatchee fechou os olhos e após um quieto e longo instante levantou os dois punhos cerrados com os braços estendidos acima de sua cabeça.
"Grande Coruja, Mãe da Floresta Juniper, sou o guerreiro Filho dos Rios, River Child, e trago a ti o corpo de meu irmão, Apanhador das Tempestades, Storm Catcher. Ele foi morto pelas mãos de um habitante de sua floresta, um que tem pinturas de guerra azuis e veste dois braceletes trançados com pele de cobra. Eu venho pedir sua permissão para adentrar sua floresta de beldades naturais, encontrar esse homem, e o desafiar a um duelo para que eu possa vingar a morte de meu irmão." E então Wenatchee jogou os braços ao solo quente como se descarregasse um grande fardo e ajoelhou-se com a cabeça curvada para baixo. Ele havia iniciado o conto. Levantou-se para continuar, concentrado por debaixo de seus olhos fechados. "O silêncio da noite ecoou pela floresta enquanto o jovem índio esperava, ajoelhado. A lua dançava por entre os pinheiros com seu longo manto branco, derramando brilho como um rio luminoso pela mata escura. O vento balançava as árvores e elas balançavam, sussurrando como as ondas ao se esfregarem umas nas outras. Muitas horas se passaram na noite. A lua ergueu-se graciosa ao topo do céu, antes de se ouvir resposta. De início pareciam as batidas de um coração, e o jovem River Child imaginou estar ouvindo o pulsar do coração da floresta. Com a cabeça abaixada ele via apenas as folhas alfinetes cobrindo o chão húmido ao redor de seus pés, mas a magnitude daquele ritmo o fez estremecer por dentro. Ao se aproximar, porém, o som se tornou mais nítido e pôde-se perceber que era, na verdade, o bater forte de enormes asas por entre as árvores. Vum. Vum. Vum. Vum. O guerreiro respirou fundo.