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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Para você

Meu velho amigo, quanto tempo.
Meu bom e velho amigo. Grande pessoa, gigante.
Pensei em ti por aí, pensei na velha guarda. Passei pelos mesmos lugares que vimos juntos e tive nas modernidades um susto. O tempo que passou não foi pouco, desde os dias em que andávamos juntos. Quis vir visitá-lo, fazer uma festa em você, dar aquele abraço. Como está o bom e velho coração? Teu pulsante, enorme e roxo, que sempre me pega surpreso quando faz tremer as paredes e os galhos das árvores.
Como está seu amor? venho espalhando o pouco que você me deu por aí, ensinando os outros a acreditarem no ser humano, a sentir a arte como um ser vivo. Arte-Deus, que nos consome. Com o pouco amor que me deu fiz muitos retratos lindos, de grandes bocas cheias de dentes sorrindo, de brasileiros cansados se cumprimentando no calor sufocante. E você, está sentindo o seu amor? Sabe o que dizem; ama-te primeiro a si próprio para então ter a capacidade de amar bem ao outro.
Eu sei, eu sei, é difícil nessa cidade! Nesse centro urbano em que o bombardeio de informações inúteis distorce a percepção de milhões de cidadãos suados até que ninguém se lembra mais da intimidade ou da sabedoria. Em que procuramos abrigo nas ilusões, despedaçando a mente como esquizofrênicos carentes. Meu lindo, caro e tenro amigo, exemplo de compaixão pura, meu compadre, conte-me suas aflições, vim te fazer um afago. Sinto que precisa de um alívio, sinta esse meu carinho.
Não falemos agora de inspiração. Para inspirar, é preciso primeiro expirar, esvaziar a mente e o corpo dos fardos e do peso morto, dos nós nas costas e da tensão no rosto. Encontrar um velho amigo é como relaxar sobre o sol, é como mergulhar na água fria e lentamente deixar para trás os problemas. Quando se vive na cidade grande, a natureza é como um velho amigo.
E a família, como vai? (pergunta que só amigo faz) Só os amigos chegam tão perto pra saber, ou se importar. Aposto que estão todos mudados e todos iguais. Crescidos, com novos planos pra mesma vida. Novas modas, mas aquele mesmo jeitão.
E você, em breve terá filhos, não é? Nem consigo imaginar! Filhos do meu bom e velho. Eu sou terrível com crianças, é claro, não sei que lado é pra cima quando se segura um bebê. Mas talvez criançolas com seus olhos e sua paixão pela vida me fariam adaptar. Ou talvez eu desmoronaria em vê-los. Como você será com seus mininos? Estudarão no CAp ou você os levaria pra África, pra Europa ou algum lugar exótico? Será que ouvirão Led Zeppelin? Será que voarão em carros? Você lerá para eles aquele livro que te dei? Velho amigo, você será um bom pai, eu sei, seus filhos te amarão muito e vocês terão os mais gostosos momentos, as mais felizes gargalhadas. Consigo até ouvir os gritos estridentes dos monstrinhos, pulando, com felicidade natalina nos olhos enormes, e correndo pela casa as seis da manhã.
Meu velho, está se sentindo melhor? Então conte mais dos problemas se quiser, e depois acenderemos uma fogueira para esquentar os dedos. Estou aqui para ouvir-te, poxa mas que saudade eu tinha! E perante a fogueira falaremos, então, de sonhos. Para reviver os bons tempos, é o melhor tipo de nostalgia.
Tenho sonhado com densas florestas habitadas por entes folclóricos, tenho incorporado o Jim Morrison. Eu vi palhaços ouvindo Bon Jovi dentro de um carro pequeno em um estacionamento vazio. Eu vi homens de bigode grosso pisar em uvas vermelhas para fazer novos sonhos. Eu vi a chama de uma vela crescer até preencher um salão e me cegar completamente, e senti a força da Terra sacudir meu corpo feito uma árvore na ventania. Vi tudo isso acordado, com os olhos abertos.
Conte-me dos seus sonhos. O que os habita? Quais são os sons dos seus sonhos? Como são as cores? Uma vez você me falou do gosto molhado de uma maçã vermelha e branca que quebrava entre seus dentes como quebram folhas secas sobre meus pés. Acho que você incorporava o Jim Morrison naquela época. Uma vez eu sentia mais o que suas palavras descreviam do que o que minhas mãos tocavam ou meus olhos viam. Mas isso foi a muito tempo, e quantos tempos já não vivemos.
Depois da morte, só lembrarão do que fizemos em alguns poucos dias específicos. Um dia seremos todos reduzidos a algumas poucas memórias afetivas de pessoas vivendo em outro século. O que sentimos e pensamos não importa para o futuro, apenas para o nosso humor. Por isso tento lhe dar um afeto aqui, antigo e verdadeiro amigo, poeta companheiro. Te dar um abraço verbal, uma paz de espírito, uma ajudinha, um tapinha. (Mais de) metade da nossa vida se resume ao amor que damos às pessoas, e às pessoas a quem damos amor. Tenho a sorte de tão bons velhos. Tive a sorte de tão bons amores.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Epílogo do Livro de Uma Página sobre meu sonho.

Sonhei que ela voltava. Que estava aqui.
Luminosa e branca, subia ao céu perfurado. Saía do fundo do mar.
Na fila do metrô, na calçada, surgia ao meu lado.
Com aqueles olhos molhados. Ficava quieta, mas ali estava.
E sofríamos. Doía-nos e nos pesava o convívio.
Continuei pelo sonho. Por quartos de hotéis e praças, por mesas de jantar e balões de ar quente. Fiz afazeres e puxei conversa com os entes fictícios. E ela ali sempre, surgida recém-chegada.
E o sonho inteiro doeu.
Abri os olhos como se não tivesse dormido. Acordei melancólico e vazio, esburacado.
Em alguns instantes, na cama ao meu lado, minha mãe acordou e logo se pôs de pé, se pôs a vestir o trabalho. Se aprontou pra luta do dia, contra sol e cansaço. Logo já estava suada. Foi, guerreira.
E fiquei seco na cama.
Quando a lua retorna ao céu quero chorar.
E quando tento ser sol de novo, só faço queimar a pele. Secar e queimar a pele frágil de boas pessoas.
A escrita me condena, sirvo aqui a sentença. Completamente inibido. Tantas vezes negado.
Poderia morrer de solidão
Tristeza e remorso.
Fantasma me deixa em paz.