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sábado, 30 de junho de 2012

Similarmente,

Os beijos dos namorados de domingo, na alienação dos apaixonados, são beijos meus, repassados das bocas que já conheci com ternura. Cada pessoa possui um DNA do beijo, um jeito só seu de beijar, e quando as bocas de um casal se encontram as técnicas se misturam e ambos recebem metade do DNA do outro, que repassam ao próximo amante. De certa forma, todos nós já nos beijamos.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

O Espelho

Nada mudou desde 10 de Setembro. Continuo impregnado com o asco do mundo alheio. Continuo incapaz de definir o limite entre o externo e o Lucas. "Ninguém mais é romântico com essa merda de não se abandonar completamente a nada inseguro." Continuo deslocando os meus ferimentos íntimos para o mundo fictício que finjo que há lá fora. O chorume infeccioso do Rio de Janeiro alastrou-se de meu intestino, é meu bile tornado visível. Os novelos róseos que embranquecem o azul do céu nessa tarde são meus devaneios geminianos, que escapam de meu crânio pela orelha, sobem ao céu como balões e viram nuvens na troposfera. O mundo é minha criação acidental,  uma continuação de minha pele, um cancer. É como um sonho que tive em Abril. Ironicamente, quem eu sou é apenas um conceito vago, perdido em um sebo mal frequentado. Um devaneio espontâneo rabiscado a caneta no canto ocre da página de um livro de poemas esquecidos. O aleatório mundo mágico da inspiração breve que não se concretizou. E a vida é isso. A troca de um olhar devasso entre dois humanos à beira da morte, que abandonariam tudo pela permanência duradoura do incendimento que lhes ocorre no sexo. O ímpeto humano, a coisa irreal. Nada é sólido, tudo está a se transformar. Como um organismo simples nadando em litros de óleo incandescente, uma ameba flutuante com um destino terrível. Tudo que existe vive para morrer e viver de novo, se deteriora e se regenera. E o resultado é um golem disforme, que nasce da imundície e cambaleia debilmente com pernas de lama preta em minha direção, petrificando-se sob o calor do sol. Da massa viscosa da cabeça do monstro surgem narizes e dentes como se fossem os rostos de almas penadas, tentando escapar de seu interior. A transformação é uma processo tormentoso e terrível. Mas sob o fogo duro do céu, a lama encrosta-se e se esfarela, se joga da criatura ao mundo e se dilui no solo novamente. Sob a camada de barro sumida, se revela uma linda estátua de pedra ígnea, esculpida e polida em simulacro do ser humano. O homem vitruviano corporificado, andando. Seus olhos de pedra me encaram impassíveis, imortais por trás de óculos de armação redonda. O último terror da mente é ver seu próprio rosto na face do que te apavora. O transmorfo roubou minha feição e agora me encontro perante a uma cópia rochosa de mim mesmo. Não sei se nessa criatura há coração. Me sinto esmaecendo sob o olhar excruciante da pedra. Eu que sou eu sou tão pouco; um punhado de terra molhada pode se erguer e se dizer Lucácio. O cálcio de meus ossos azuis não é páreo contra o bruto negro da crosta terrestre. Se fraquejar, perco minha existência no espelho. É uma luta da mente e da alma existir e afirmar que existo. O golem de lama sou eu, e o animal rosa me encara assustado, exalando alarme e mortalidade. A única memória que tenho é do centro líquido da Terra, de pulsar no quente âmago de Gaya e de ser cuspido para a superfície. Nos piores dias do inverno da alma, quando a solidão se torna força sísmica e derruba sobre mim os prédios, tenho vontade de re-penetrar no solo. Não sou mais romântico com essa merda de não me abandonar completamente a nada inseguro. E o mundo me espelha na inconsistência. Nada é puro.