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quinta-feira, 15 de abril de 2010

Bobagem.

Janeira é multidão e ossos
e Melindragem
Sou toscano caido na fossa
fotomontagem
Impercepção de tudo
ou quase tudo
Vira-me vasta miragem
Truco no rolo do filme
viragem
Chama na asa na queda
lançando peças
bobagem
destroços e corpos no mar
Sombrio e glacial.

Devaneio.

Enfim ponho-me à uma cautelosa escrita, como o cego que tatea a calçada com sua vara colapsável. Curvo-me sobre o papel assombrado pelo velho ditado de que não se pode ser escritor quem nada nunca escreve. Não que me falte o desejo confuso de expressão, mas não me sinto hábil a transformar em literatura um catálogo de pensamentos implosivos e simultâneos lidos a mim pela minha própria voz interna, que, a propósito, é menos fanha e insegura do que a que profiro pelos dentes. Também não sinto que posso extenuar a eventual transcrição de roteiros cinemátofos, recortes de cena e diálogos soltos que possantemente dominaram essa minha sala escura de escritas. Eventual digo por admitir que reincidirá e não deixarão de surgir os tais, dada minha necessidade de retê-los e revê-los posteriormente para que componham os grandiosos filmes de surrealismo minimalista que possa vir a produzir, humildemente falando.
Em uma ou outra das crises existenciais que resolveram me banhar recentemente (no sentido literal, pois se escova muita sujeira da mente nessas crises), percebi que, em parte, é possível que minha decisão unânime de me tornar cineasta tenha derivado de meu precisar de uma namorada. Certo dia, em um estupor de juventude que me durou anos, decidi tomar para mim que os relacionamentos são ou seriam como obras de arte e que, através da troca singular de hormônios e oxigênio, se criava ali, entre dois interlocutores, humanos ou pássaros, na rua, no bar ou no quarto de hotel, uma pintura, uma sonata, um curta ou longa ou demasiada arte. Assim fui percebendo todos meus encontros, com os cobradores de ônibus, amigos dos amigos, mãe, pai, Deus e os Orixás: cada um com suas nuâncias, cada um com suas pinceladas em tons de azul marinho ou marrom, cada um perfeito em si. Minha percepção do contato humano, porém, foi se diluindo, como as tintas se misturam no stêncil, e todas as trocas de olhares, as tosses e os sorrisos, que haviam se tornado unidades poéticas assim como são as ondas na praia ou os flocos de neve, se demonstravam também incuravelmente furtos.
Me desesperei ao meio de tantas obras de arte desperdiçadas, largadas na beira da estrada, e me lancei ao esmero de aperfeiçoar a minha composição metafísica de sinfonias do contato humano. Fi-lo com o ímpeto de transformar, ingenuamente, meus amigos, conhecidos e amantes em vitalícias frutas que poderia degustar eternamente, congelados na forma de quadros, poemas ou rolos de nitrato. Percebi-me então ator e diretor da minha reimaginação da grande comédia, da grande tragédia e do grande romance (que nunca veio). Feito uma escultura tridimensional que se revela por entre os desenho coloridos de uma ilusão óptica, percebi a câmera filmadora que eu pusera por trás de meus olhos, e o mis-en-scène que sempre havia composto.
Talvez a melhor conclusão que me veio com os tais devaneios foi de que o congelamento criogênico ainda não é cientificamente possível (fora da ficção-científica) e tais lendas, como a do corpo de Walt Disney glacificado no subterrâneo da atração dos Piratas do Caribe, servem para o incendiamento da imaginação e não da realidade. Roubar o momento de sua fugacidade para guardá-lo para sempre é como roubar a vida de uma pessoa e se ater ao corpo. Percebo, porém, que a arte moderna não se contenta com o etéreo universo do imaginário e muitas vezes se projeta nas ruas e nos escritórios, tomando para si a romântica tarefa de criar obras cujo canvas é o próprio mundo. E concordo. Vejo muitas peças contidas em salas de teatro e saio nervoso, como se ali dentro ouvira um segredo que não podia repetir no mundo real por medo de ser posto no hospício. É muito charmoso, é claro, mas talvez seja necessário retirar as paredes que erguem a separação. A cortina vermelha como um aviso piscante de que é apenas um espetáculo, para não confundirem com a realidade. A sociedade teme o espetáculo. O fantástico não se restringe aos limites da gravata e da camisa branca. A fantasia dá coragem ao homem domesticado como um carneiro gordo ao leão de circo. Não sei mais o que estou falando. Saia daqui e vá conversar com um estranho na rua.

Soul Coughing

Na rua, eles com armas apontadas pra ele.
Escuro, e a lâmpada no alto do poste criando uma poça amarela de luz.
Ele de quatro, na poça amarela. Ele tossindo, tossindo sem parar.
Sua vida pertence a nós. E as armas engatilham. Caclésh.
A tosse fica mais violenta. Ele, seus braços magros estendendo os ombros do cimento. A cabeça e o cabelo oleoso, caindo na cara, babado, tossindo. Arruegh. Rrugh.

E ao cimento cai em cordas a baba. Ele em convulsões. A perna estirada na calçada cinza, as jeans rasgadas. E, em uma contração violenta do estômago, algo lhe começa a sair pela boca. Uma bolha roxa e pegajosa. A catárse, o âmago, a verdade horrenda. Ele engasga, a cabeça balança, todo corpo trêmulo, fraco. Cai no chão a bolha, com um som estourado de soco. Ali, no asfalto, ali na rua, paria pela boca seu coração. E colapsou nervoso, vazio. Sua vida lhes pertencia.

Um papel numa garrafa verde.

Seria assim.

No quadro só seus rostos, de frente um ao outro, os cabelos pretos, ambos curtos, e os pescoços. No fundo, a esquerda, uma grande janela.
Ambos respiram ofegantes, intensamente.
- Se eu fosse um segredo, você contaria a alguém?
ele pergunta.

e então cortaria para uma curta cena dela na praia de noite. Ela está toda iluminada por uma luz branca olhando ofegante as ondas baterem.
Ela, determinadamente tira do bolso um papel, enrola, enfia dentro de uma garrafa verde vazia e faz um grande esforço para enfiar a rolha.
Ela joga a garrafa ao mar. A garrafa cai na água e é trazida de volta por uma onda pequena, e então é puxada ao oceano escuro de novo no retrair.

Volta ao quadro deles dois.
- Eu jogaria você no mar.
Ela diz.
Ele, depois de um segundo, levanta para sair do quarto.

- Leva consigo suas coisas.
E ele pega o casaco no chão, e pega a caixa, olha pra ela, e vai.

A Neve Poente no Campo.

Aos filósofos, os novos amigos, bonecos de carne
Aos impertinentes, acordados e interessados,
postos atentos, os olhos arregalados:
Nasci do frio e Morfeu Imperador me calou com os dedos. Suturou meu buraco de boca, me restaram olhos e um nariz cenoura. Como as corujas, a quem deu olhos enormes, luas negras eclipsando anéis brancos. E a visão que penetra intensa, como lanças. Às curiosas corujas Morfeu cedeu a visão lunática, pálida em mistério. Perante a floresta branca me calo e tremo. Selva de gelo, das árvores mortas, selva da sobrevivência. Minhas curvas me denunciam. Bola de neve no reino do gelo, das estalactites, é presa do tempo. Mas as horas compartilham comigo a lentidão. Paciência anciã, vinda do espaço. O inverno e o gelo são recordações do vácuo espacial. Frios, lentos e assassinos. Porém, o inverno é feito d’água. D’água pulsante, viva, cristalina. Água mãe de todos seres, grávida do solo. Um dia a água preencherá todo o universo. E permanecerei sentado aqui, boneco de neve, espantalho das rapousas e dos lobos brancos. De meu fadado recanto gélido, sou vigia do tempo branco. Cristalizada em teias de rios congelados e neve, a delicada natureza hiberna e me encarrego de guardar seu sono profundo. Se não eu quem confortará os galhos secos? Quem escreverá as serenatas da neve poente no campo?