Páginas

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Morto Vivo

Ele acordou sem expressão em seu rosto pálido. Ele acordou em uma hora vaga entre a manhã e a tarde e através das lentes tingidas de seus oculos escuros via o teto em bege escuro, e o ventilador monotono ainda girando persistente, lentamente balançando como se cada giro fosse um esforço. Ele (o rapaz) acordou e não fez força para abrir os olhos ou desentorpecer sua expressão. Não havia sons nenhuns, além do zumbido do ventilador. O teto e o ventilador, sépia, e o menino deitado ali sem a mínima vontade de começar a pensar. Sentou-se na cama ainda sem ligar o cérebro. Deixou o silêncio da casa ecoar por dentro de si. Seu cabelo quando acordava parecia que acabara de ser arrumado para um show de rock, todo espantalhado. O rapaz se contemplou antes de sair do quarto. No quarto havia apenas a cama, o teto, o ventilador e ele. Vestia seu cabelo espancado, uma camisa dos beatles velha e amassada, um samba-canção branco com coraçoes vermelhos e seus óculos escuros tingidos de marrom que deixavam o mundo em sépia. O suficiente, pensou. Saiu do quarto e espirrou porque no corredor escuro fazia mais frio. Esticou a mão esquerda à parede e deixou que ela o guiasse até o fim do corredor, até a cozinha, onde abriu todos os armários debaixo da pia até achar a caixa colorida do cereal matinal. Abriu a geladeira, abriu mais armários, sem abrir a boca ou os olhos completamente. Logo possuía uma tijela cheia de leite e cereais fibrosos, uma colher especialmente redonda e côncava e um copo de vidro alto cheio de cerveja quente e gelo. Derramou leite no chão e, quando esticou o braço para tentar buscar o pano, derramou cerveja também. Então deixou pra lá tudo e se encostou contra a bancada de madeira pra comer, molhando sua meia no estrago. Tomou um gole grande e demorado do copo pra molhar a garganta. O gosto amargo lhe contorceu o rosto, lhe deixou com careta, o nariz amassado e a língua pra fora. Gosto de saliva seca que passou a noite na boca dele e de cerveja seca que deixaram a noite inteira aberta na mesa. Cheiro de água suja e gosto de vômito. Encolherou o cereal e, pingando leite, enfiou na boca. Cospiu em seguida, no chão mesmo, enojado. Igualmente amargo, o leite devia ter estragado. O rapaz nem se lembrava de ter comprado leite. Olhou para a tijela e o líquido branco suspeito. Cheirou. Não cheirava a nada. Comeu um cereal e cuspiu novamente. Gosto de vômito. Jogou a tijela cheia, a colher redonda e o copo de cerveja dentro da pia de metal. O que ele queria mesmo era uma boa carne. Vermelha e suculenta. Um bife, quase cru, com sangue escorrendo ainda. Lembrou de uma cena em um filme que havia visto em que um homem matava um búfalo e em seguida cortava um pedaço de sua carne roxa e molhada para comer ali. Ainda quente com a vida pulsante do animal. O rapaz sentiu então grande fome e pena que não haviam búfalos no Rio de Janeiro. O semelhante mais próximo que ele conseguiu imaginar eram os macacos pregos na floresta da Urca ou os cavalos de Paquetá. Ainda haviam cavalos em Paquetá?

Nenhum comentário:

Postar um comentário