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sexta-feira, 22 de junho de 2012

O Espelho

Nada mudou desde 10 de Setembro. Continuo impregnado com o asco do mundo alheio. Continuo incapaz de definir o limite entre o externo e o Lucas. "Ninguém mais é romântico com essa merda de não se abandonar completamente a nada inseguro." Continuo deslocando os meus ferimentos íntimos para o mundo fictício que finjo que há lá fora. O chorume infeccioso do Rio de Janeiro alastrou-se de meu intestino, é meu bile tornado visível. Os novelos róseos que embranquecem o azul do céu nessa tarde são meus devaneios geminianos, que escapam de meu crânio pela orelha, sobem ao céu como balões e viram nuvens na troposfera. O mundo é minha criação acidental,  uma continuação de minha pele, um cancer. É como um sonho que tive em Abril. Ironicamente, quem eu sou é apenas um conceito vago, perdido em um sebo mal frequentado. Um devaneio espontâneo rabiscado a caneta no canto ocre da página de um livro de poemas esquecidos. O aleatório mundo mágico da inspiração breve que não se concretizou. E a vida é isso. A troca de um olhar devasso entre dois humanos à beira da morte, que abandonariam tudo pela permanência duradoura do incendimento que lhes ocorre no sexo. O ímpeto humano, a coisa irreal. Nada é sólido, tudo está a se transformar. Como um organismo simples nadando em litros de óleo incandescente, uma ameba flutuante com um destino terrível. Tudo que existe vive para morrer e viver de novo, se deteriora e se regenera. E o resultado é um golem disforme, que nasce da imundície e cambaleia debilmente com pernas de lama preta em minha direção, petrificando-se sob o calor do sol. Da massa viscosa da cabeça do monstro surgem narizes e dentes como se fossem os rostos de almas penadas, tentando escapar de seu interior. A transformação é uma processo tormentoso e terrível. Mas sob o fogo duro do céu, a lama encrosta-se e se esfarela, se joga da criatura ao mundo e se dilui no solo novamente. Sob a camada de barro sumida, se revela uma linda estátua de pedra ígnea, esculpida e polida em simulacro do ser humano. O homem vitruviano corporificado, andando. Seus olhos de pedra me encaram impassíveis, imortais por trás de óculos de armação redonda. O último terror da mente é ver seu próprio rosto na face do que te apavora. O transmorfo roubou minha feição e agora me encontro perante a uma cópia rochosa de mim mesmo. Não sei se nessa criatura há coração. Me sinto esmaecendo sob o olhar excruciante da pedra. Eu que sou eu sou tão pouco; um punhado de terra molhada pode se erguer e se dizer Lucácio. O cálcio de meus ossos azuis não é páreo contra o bruto negro da crosta terrestre. Se fraquejar, perco minha existência no espelho. É uma luta da mente e da alma existir e afirmar que existo. O golem de lama sou eu, e o animal rosa me encara assustado, exalando alarme e mortalidade. A única memória que tenho é do centro líquido da Terra, de pulsar no quente âmago de Gaya e de ser cuspido para a superfície. Nos piores dias do inverno da alma, quando a solidão se torna força sísmica e derruba sobre mim os prédios, tenho vontade de re-penetrar no solo. Não sou mais romântico com essa merda de não me abandonar completamente a nada inseguro. E o mundo me espelha na inconsistência. Nada é puro.

2 comentários:

  1. porra, isso é muito bonito.

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  2. eu acordei e escrevi isto, e acho que se comunica com seu manifesto.

    nesse inconsciente insustentável
    nada como um mistério pra engrenar

    amar seria entender
    sentir pelo outro
    na flor da pele
    e na iminência da mente

    a gente tentando se encontrar
    se afastando, se entreolhando
    dançando em sensações
    é mágico
    comico e trágico

    porque realidade demais
    vai sufocando
    se nao tem gotinhas de amor
    com gostinho de humor
    molhando sempre seus lábios
    suas idéias e seus passos
    pois quando nao
    monstrinhos da ilusao nascem
    toma conta da alma a perdição
    de uma carente compaixão

    nesse inconsciente insustentável
    nada como um mistério pra engrenar

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