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domingo, 29 de junho de 2014

A Psicodelia e os Labirintos da Mente

São os zumbidos confusos da rua, das máquinas de ferro insanas, que carregam pelo asfalto frio os passageiros dos trens invisíveis. Conversas esquizofrênicas denunciam a presença constante de estranhos. Dentes trocam sons por entre barbas, garrafas e mãos. As luzes neon dos bares lançam sombras às calçadas e piscam em síncopes fracas de voltagem pálida e inconsistente. Todos sabemos quem somos no fundo, mas na noite urbana esquecemos. Tudo se torna incerto. Abrem-se buracos negros e o mistério absorve a ciência. Pelas ruas madrugais da cidade voam os fantasmas do desconhecido. É um quase-silêncio, em que a escuridão e as ruas de fundo prometem mundos devassos e libertinos aos curiosos corações ingênuos. É a massa humana se encontrando, respirando o ar corpulento da noite, discutindo os temas, se avaliando com lanternas dantescas que lhes emanam dos olhos lupinos. São os lobos da noite os jovens, com seus casacos de pele estampada. Com as suas intenções predadoras voláteis, se espalham em alcateias. Os grafites se movimentam de noite, como se o diabo lhes soprasse vida, e dançam com as sombras das árvores. À noite a carne é crua, a mente se desprende da gravidade e os psicodélicos surgem soturnos. Os psicodélicos são homens de preto, são mulheres de vestidos brancos. Pairam no meio da rua, no final do beco vazio, convidando-te à magia. Carregam músicas na aura; violinos pesados, tambores tribais e sussurros. Os psicodélicos sabem tudo. Ao redor de cada esquina há um labirinto, há um portal secreto no asfalto, que só os psicos sabem abrir. Eles nunca sorriem e não tem nome. Psicos tem carga elétrica, podem energizar mais de vinte pessoas apenas com a presença ilusiva. Somem sob olhares fixos, cochicham nos ouvidos de outros. Psicos escrevem música com os dedos e fazem amor primal. Psicos nascem do pulsar noturno, perambulam por espaços vazios, às vezes andam pra trás, às vezes flutuam no ar. São os guardadores do mistério noturno. Representações quânticas e sinestésicas da magia que escorre da lua. Do vapor gélido e lisérgico que a maré cheia libera, que nos entra pelos pulmões como xamanismo lunar e preenche nossas pupilas com as 23 cores secretas. Somos quase-zumbis durante o ciclo diurno, operários letárgicos se arrastando pelas filas de banco, nutrindo ansiedade pela próxima dose do vapor cigano, inseminado e jorrado da lua. O elixir místico da boemia, servido em cálices turco-romenos, surgidos infalivelmente dos bolsos fundos de psicos disfarçados. Serventes da insônia. Piratas da vida eterna. Somos todos amantes da lua.

As Ovelhas

Somos ovelhas, carneiros. Temos pele de lã. Vejo um retrato meu de criança: "Esse aqui tinha tanta esperança". Ando pelo bairro sozinho, desafiando a calçada. Desafio o mundo e as voltas que dá, depois me retraio a minha pequenice. Somos ovelhas, carneiros e cabras. Somos notas musicais preenchendo o espaço. As ruas são nossa caixa acústica e entramos e saímos de tom. Formamos harmonias com os amigos e ao longo dos anos vamos compondo melodias juntos. Compasso aqui, compasso ali. Aquela estrofe no colégio, aquele refrão nas mesas dos bares. Somos músicos desajeitados, improvisando em instrumentos ocos. Baixei na internet o canto de uma baleia, pra ouvir nos dias de chuva. Cinza no céu, poças escuras no chão e o eco submarino de uma amiga, flutuando pelas profundezas e me chamando pro fim do mundo. Me chamando pra nadar com ela pelo infinito azul e esquecer. Às vezes fecho os olhos enquanto caminho, pra sentir aquela excitação do perigo.  Nunca bati em nada com os olhos fechados. Bato sempre nas coisas com eles abertos. Só sei me soltar de minhas ânsias quando deito na volúpia da cama. Minha cama é como um lago arenoso; águas turvas onde desapareço à noite. Quando o peso de ser humano desliza pelos meus membros úmidos e minha alma cristalina estende galhos translúcidos ao infinito e ao mistério profundo. O mistério profundo é a música que toca no fundo do silêncio absoluto. É a coruja invisível na mata, no fundo das trevas da noite. A coruja que chama meu nome, em línguas que só os animais conhecem. Se ao menos eu falasse a língua profética das corujas, dos insetos elétricos, das paredes da madrugada, das castanheiras e dos quero-queros, das marés noturnas e da lua cheia. Se ao menos eu vivesse o amor pleno, que sei que habita em mim, ao invés dessa consciência auto-deflagrante, que me promete apenas a escravidão. Porque me vejo em todas as pessoas e coisas do mundo, menos no espelho. No espelho há um fantasma magro que me suga a vitalidade com os olhos, e toda vez que o vejo envelheço um pouco. Sei que ele continua ali quando fecho os olhos, e essa é a macabra história de ser a mim mesmo. Que nunca entrarei nessa cama ou nessa terra encharcada de chuva. Nunca serei o que meus pais querem pra mim, o que meus irmãos vêem em mim ou o que meus conhecidos suspeitam sobre mim. Serei apenas um quase. Nem aqui concretamente, nem no espelho inteiro. Fraturas de tudo o que me disseram. Sou milhares de crianças com olhos gigantes e a boca meio-aberta. Uma pra cada animal que já vi latir, galopar, respirar, ou emitir palavras enigmáticas nos cantos vívidos da selvageria. Vejo a natureza do outro lado do vidro, e eu, deste, preso à minha indignada raça. Aos humanos que compreendo menos do que compreendo as corujas, mas são meu inexplicável destino. Então, finjo que me agrada. Faço-me indignado. Apresso-me a aprender os signos, acertar as palavras. Apesar de minha criança entender cada vez menos e se isolar de mim, monto-me em teorias e as passo aos próximos. Minha tara sádica é passar conhecimentos adiante; desanuviar mentes ingênuas, roubar-lhes um pouco da maravilha de um mundo inocente. A vingança mais discreta de todas e a satisfação mais amarga. Mas, em geral, eu acompanho a corrida. Essa corrida humana, louca e desesperada ao futuro. Não sei se é fuga do passado sangrento ou ânsia pela virgindade do futuro, mas não há pausas ou descansos. Tento entrar na linha. Seguir o ritmo. Preencher as lacunas. Corresponder às expectativas. Entregar a dissertação. Apresentar a peça. Fazer a entrevista. Agradecer os aplausos e partir silenciosamente. Tomar meu banho e dormir. Me lavar desse mundo e deixá-lo. Nunca mais ver no espelho a criatura muda dos olhos pretos. O limite de minha existência.