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sábado, 7 de agosto de 2010

A dança dos felinos veludos e o lumiar demoníaco dos números vermelhos no meu rádio-relógio.

O couro encapando o livro era puro vermelho-sangue. Tão cortante e derramada era a cor que despertava ao olhar distraído mórbida curiosidade pelo processo de tintura. O leitor, em pleno leito, era feito vilão diabólico, manchando os dedos naquela carnificina toda. Sendo eu mesmo a vítima dessa posição, curvava como vilão o arco dos ombros magros, que formam junto à base da coluna um V estiloso nas costas. Atracado na poltrona da madrugada na felinidade gorda noturna, rangia até gastar os dentes, pra certo de não ficar surdo e louco com a agulha mortal do silêncio. Minha família dorme feito assassinato e na ausência de demais insones as paredes não me poupam olhares acusativos. Cochicham na cozinha. O livro que se derretia pingou ao chão e com o molho do couro nas garras parecia injusto arrastar as paredes por rigorosa investigação. "Matei eles todos." confessei sem rodeios, "Posso fazer um telefonema?". Suado no desespero, engancho o indicador ensagüentado na roda do aparelho antigo, que giro loucamente até o freio metálico parecendo até vitrola quebrada, que repete, que repete, que repete. Estou ligando para a única alma que me atenderia a essa hora, ligando do interior de um pesadelo. Um ex-amante tornado amigo que contratei como secretária quando sua família tragicamente foi assassinada enquanto dormia. Em apavorante decepção o sinal não é atendido - as paredes parecem descer em minha direção. Elas sobem e descem como a faca de Norman Bates, como minha respiração tubulenta; lentamente me alcançam. Finalmente desisto derrotado de ouvir o sino eletrônico que chama minha imprestável secretária-alma-gêmea?. Engancho o receptor. O telefone imediatamente se põe a berraria. Atendo pra não incomodar os dormentes mas é minha rouca voz que sussurra do outro lado. Havia ligado pra mim mesmo?
- Quem fala?
- Eu mesmo.
- Que quer?
- Matei o tempo.
- Porra.
- As paredes estão descendo, vêm me coletar.
- Fique sob a batente.
- É verdade.
- Algo mais?
- Acho que estou surdo.
- É possível. Aperte, com os dedos, cada tímpano. Sente dor?
- Não sinto, mas minhas mãos estão ensangüentadas!
- Pode ser uma hemorragia cerebral.
- Acho que nunca te amei.
- Todos hemorragiados do cérebro dizem isso.
- Quanto tempo tenho pra viver?
- Não é muito.
- Nos veremos novamente?
- Não como nos vimos antes.

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